Geografia da Amizade

Geografia da Amizade

Amizade...Amor:
Uma gota suave que tomba
No cálice da vida
Para diminuir seu amargor...
Amizade é um rasto de Deus
Nas praias dos homens;
Um lampejo do eterno
Riscando as trevas do tempo.
Sem o calor humano do amigo
A vida seria um deserto.
Amigo é alguém sempre perto,
Alguém presente,
Mesmo, quando longe, geograficamente.
Amigo é uma Segunda eucaristia,
Um Deus-conosco, bem gente,
Não em fragmentos de pão,
Mas no mistério de dois corações
Permutando sintonia
Num dueto de gratidão.
Na geografia
da amizade,
Do amor,
Até hoje não descobri
Se o amigo é luz, estrela,
Ou perfume de flor.
Sei apenas, com precisão,
Que ele torna mais rica e mais bela
A vida se faz canção!

"Roque Schneider"



Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Especialista em Turismo e Hospitalidade, Geógrafa, soteropolitana, professora.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Namíbia, a África protegida


Em 1990, a recém-independente Namíbia tornou-se o primeiro país do mundo a incluir a proteção ambiental em sua Constituição.
Namíbia, a África protegida
Tingida de laranja pelo sol matinal, uma imponente duna serve de pano de fundo para os troncos de acácias no parque Namib-Naukluft.
Ao amanhecer, três semanas antes do solstício de inverno, os derradeiros fiapos de névoa se retorcem acinzentados contra o céu róseo sobre uma duna arenosa na borda oriental do deserto da Namíbia. Um chacal passa trotando, rumo a um grupo de acácias a oeste. Um antílope órix avança decidido para uma cacimba perto de um acampamento de turistas. Ao meu lado está Rudolph !Naibab*, guia de safári que cresceu na região de Kunene, 500 quilômetros ao norte desse local, na Reserva Natural NamibRand, criando ovelhas e burros nas terras de sua avó.
“Naibab está com 30 anos, mas revela a sagacidade de alguém bem mais velho, o que ele atribui ao fato de ter sido criado no deserto. "Esta terra faz com que a gente sempre leve em conta a vida e a morte", diz ele. "E também a guerra. Isso faz a gente acumular experiência com maior rapidez."
A guerra civil da Namíbia eclodiu em 1966 e prolongou-se por 22 anos. Em 1990, quando afinal tornou-se independente da África do Sul, o país foi um dos primeiros no mundo a introduzir em sua Constituição a proteção do ambiente. Era como se os namibianos reconhecessem que, tendo lutado pelo solo em que pisavam, agora eram responsáveis por ele. "Há vários motivos para o movimento ecológico ter surgido com a independência", explica !Naibab. "Durante a guerra, na década de 1980, também houve uma seca violenta que desesperou os criadores. Como as suas ovelhas morreram, eles tiveram de abater animais selvagens. Ficou evidente então o quanto é fácil roçar a morte quando a gente não protege nem respeita os recursos disponíveis."

Até 20 anos atrás, toda essa terra, as áreas vizinhas e as ainda mais além estavam divididas por cercas e repletas de ovelhas. Tento imaginar esses criadores, sempre de costas para o vento, soterrados pela areia de tom vermelho, esperando anos pela chuva. "Eles tinham sentimentos dúbios a respeito deste lugar", admite o guia. "Por um lado, não havia água. Por outro, como é possível não ficar maravilhado com tudo isso? Como é possível não se sentir impelido a preservar isso?"
O motivo de minha viagem à Namíbia foi que, no fim de 2008, o governo havia transformado 2,2 milhões de hectares ao longo do litoral sudoeste em um parque nacional, batizado de Sperr- gebiet. Depois disso, as autoridades podiam dizer que quase metade do país era formada por parques nacionais, unidades de conservação comunitárias e reservas particulares. Com a criação, em dezembro de 2010, do Parque Nacional Dorob, a costa entre o rio Kunene, na fronteira com Angola, e o rio Orange, na divisa com a África do Sul, formava uma quase ininterrupta barreira de parques. Estavam disponíveis todos os elementos para o que poderia ser designado como o Parque Costeiro Nacional Namib-Skeleton - um megaparque litorâneo. A Namíbia parecia ser um exemplo raro de uma jovem democracia africana determinada a assumir a liderança na proteção ambiental de seu território.
*O sinal ! anteposto ao nome de Naibab é uma forma de indicar os estalidos usados nas línguas locais
Esse otimismo se confirma em meu segundo dia no país, quando chego à unidade de conservação Kulala, um refúgio de 37 mil hectares ao lado da Reserva Natural NamibRand, para observar a libertação de dois guepardos por uma das mais conhecidas conservacionistas da Namíbia, Marlice van Vuuren, e seu marido, Rudie. Criada entre os bosquímanos na região de Omaheke, Marlice é um dos raros não bosquímanos a falar com fluência a língua deles. Agora com 30 e poucos anos, ela dirige o N/a’an Ku Sê, um refúgio de fauna situado 40 quilômetros a leste de Windhoek. Ali, ela cuida de animais órfãos ou feridos, transferindo-os de áreas problemáticas para outros locais, onde os seres humanos, sob a forma de turistas, dispõem-se a pagar um bom dinheiro para ver os bichos.
A recuperação e o reabastecimento das áreas selvagens não são fáceis nem baratos. "É preciso planejamento e esforço para restabelecer o equilíbrio de um habitat de tal modo que seja possível reintroduzir ali os guepardos", conta Marlice. "Tudo tem de estar em seu lugar. Há presas suficientes? Água? É um ambiente sustentável? Se as respostas a essas questões forem afirmativas, metade da batalha foi vencida. Em seguida, temos de esperar e ver se os guepardos se acostumam com o lugar." Os dois felinos rosnam e recusam-se a sair do reboque em que estão. O macho chega a morder o pé de Rudie. Nos afastamos e esperamos. Um arbusto na planície pedregosa de repente se mexe e vira um avestruz. O vento faz o possível para soprar através de nosso corpo.
As pessoas que vivem no deserto da Namíbia, ou perto dele, distinguem dois tipos de vento: um deles é o leste, que sopra do Kalahari e vai ganhando força à medida que perde altitude, até varrer esse deserto a 100 quilômetros por hora ao mesmo tempo que eleva a temperatura a 40ºC ou mais. Já o outro é o benfazejo vento do sudoeste, vindo do Atlântico frio e carregando a névoa até 64 quilômetros terra adentro. É ele que proporciona a umidade necessária para sustentar a mutável fauna silvestre. Viabilizada pela neblina, não é nada extravagante essa existência de serpentes e lagartos, besouros e aranhas, mas ela permite um nível alto de especialização.
E é uma existência precária, a tal ponto que muitos namibianos com quem conversei temem que mesmo pequenas mudanças no clima possam provocar o colapso desse sistema delicado. "Não há como deixar de temer que o aumento de poucos graus seja catastrófico", comenta o veterinário Conrad Brain, que está ali para acompanhar a soltura dos guepardos. Brain, que também é piloto, costuma sobrevoar o litoral da Namíbia, e monitora com atenção as tendências climáticas. "Há cardumes de águas-vivas e de tubarões avançando cada vez mais para o sul - para mim, um sinal de que o mar está ficando mais quente", diz ele. "É fácil ficar preocupado. Por isso, a libertação dos guepardos reforça nossa esperança." Assim que guardo o bloco de anotações, os guepardos saem do reboque. A fêmea é a primeira a saltar para fora. Depois o macho se esgueira atrás dela. Em segundos ambos haviam sumido de nosso campo de visão, ainda que continuássemos no campo de visão deles.
A transferência bem-sucedida desses dois guepardos é exemplo de algo cada vez mais comum na Namíbia. A quantidade de animais silvestres está aumentando, sobretudo em áreas de conservação e reservas particulares fora dos parques nacionais.

Até 1990, os rinocerontes-negros haviam sido abatidos com tal intensidade que estavam à beira da extinção na Namíbia; agora contam mais de 1,4 mil espécimes. Vinte anos atrás, cerca de 800 guepardos eram abatidos a tiros a cada ano por criadores e agricultores; agora esse número caiu para cerca de 150, e os caçadores esportivos têm permissão para matar outros 150.
Para chegar ao Sperrgebiet, tive de sobrevoar quase toda a extensão do deserto da Namíbia em seu trecho mais largo (desde a Reserva Natural NamibRand até a baía Walvis), e depois ainda um pedaço razoável de seu comprimento (da baía Walvis a Lüderitz). A viagem até o parque, e dentro dele, é no mínimo tão chocante pelas contradições que mostra quanto pela exibição de uma beleza remota e fustigada pelos ventos. Embora a paisagem se manifeste quase sempre como pura topografia - dunas e o quartzo rebrilhante no monte Witberg -, continuam evidentes as cicatrizes deixadas há um século pelas atividades humanas: acampamentos abandonados de garimpeiros de diamante. Junto à baía Walvis, o deserto exibe marcas mais recentes - as garatujas negligentes de milhares de veículos 4x4 que revolveram a frágil crosta superficial do terreno.

Na maior parte do tempo, os ocidentais ignoraram a Namíbia e suas condições áridas - "a terra criada pela fúria de Deus", como a chamavam. Mas isso não poupou a região da frenética exploração que ocorreu no restante da África. As ilhas próximas à costa (hoje transformadas em santuários marinhos) foram reviradas para a extração do guano rico em nitrogênio, usado na fabricação de pólvora e fertilizantes, e as águas frias e repletas de nutrientes do Atlântico foram esquadrinhadas na caça às baleias. Até o início do século 20 haviam sido removidos depósitos de guano com pelo menos 6 metros de profundidade, nada restando além da rocha nua, e as baleias-francas quase se extinguiram.
Em 1908, o primeiro diamante foi encontrado no sul. Meses depois, o governo alemão, que controlava a região sudoeste da África - a atual Namíbia - como um protetorado, transformou uma área de 22 mil quilômetros quadrados em torno do local da descoberta em uma área proibida, acessível apenas à empresa que extraía diamante. Para resolver a escassez de mão de obra criada pela cataclísmica guerra dos colonos alemães contra os povos meridionais (Herero, Nama e Damara), foram recrutados trabalhadores de longínquas tribos setentrionais (Ovambo e Kavango). Até hoje, montículos parecidos com sepulturas infantis podem ser vistos por todo o Sperrgebiet, um monumento ao trabalho daqueles que se arrastaram pelo deserto com bateias a fim de peneirar os pedregulhos em busca de diamante.
A mineração de diamante continua até hoje no litoral junto à parte sul do parque e, vistas de um avião, as escavações mais parecem enormes trincheiras. Embora o acesso às áreas de mineração seja proibido a visitantes não autorizados, o temor da mineração ilegal e dos roubos faz com que o Sperrgebiet continue parecendo proibido - não literalmente, mas no sentido de algo bem preservado. Apenas poucos turistas podem entrar no parque de cada vez, acompanhados de um guia autorizado, e câmeras na estrada monitoram os veículos que chegam e saem. A atmosfera dominante de paranoia talvez seja mais bem ilustrada pelos veículos e equipamentos enferrujados que são abandonados dentro do parque quando deixam de ser úteis - em uma tentativa de impedir que os trabalhadores das minas ali ocultem diamantes com a intenção de recuperá-los mais tarde em algum ferro-velho fora do parque.
Hoje a Namíbia é o quarto maior exportador africano de minerais não energéticos e o quarto maior produtor mundial de urânio. Essa riqueza mineral não é partilhada de nenhuma maneira efetiva - a Namíbia tem uma das mais desiguais distribuições de renda no mundo -, e a exploração dos recursos acontece não só em terrenos particulares mas também nos limites e mesmo dentro de áreas já delimitadas como parques nacionais. Duas dessas minas, uma delas no interior do Parque Nacional Namib-Naukluft, estão produzindo urânio; estima-se que, até 2015, sua produção aumente de 5 mil toneladas para cerca de 18 mil toneladas de yellow cake, uma forma semiprocessada de urânio. E o mais irônico é que, para extrair o abundante urânio de que dispõe, a Namíbia precisa usar uma quantidade assombrosa de um recurso escasso: água. Não é fácil obter dados precisos, mas apenas uma dessas minas consome 3 milhões de metros cúbicos por ano. Na época de minha visita, toda essa água era retirada de aquíferos - depósitos fósseis de água que não são bem reabastecidos pela escassa precipitação na região. Uma enorme usina de dessalinização está sendo construída na costa perto de Swakopmund.
Em tese, a atividade mineradora deveria ocorrer de maneira concomitante à preservação dos recursos e ao progresso econômico. "Somos uma nação em desenvolvimento", explica Midori Paxton, do Ministério do Turismo e Meio Ambiente, em Windhoek. "Em termos práticos, não há como excluir a mineração de nossas áreas protegidas, mas fazemos o possível para reduzir o impacto da atividade", diz ela, mostrando-me um mapa das áreas de concentração de biodiversidade identificadas pelo ministério. Midori aponta para uma área, hoje incluída no Parque Nacional Dorob, que é um dos mais importantes campos de liquens no país. Tais campos - florescências de tons alaranjados e cinzentos sobre a areia avermelhada e as crostas de gipsita escura - contribuem para a estabilidade do solo e são fonte crucial de nutrição para os invertebrados. Os liquens são elementos fundamentais de populações mais amplas de plantas e animais. Em função da vulnerabilidade dos campos, eles foram cercados e identificados em mapas. No entanto, o campo de liquens indicado por Midori ficava entre o mar e uma mina de urânio, e, quando fui ao local, ele acabara de ser destruído. Valas de prospecção haviam sido escavadas na área, não muito longe de onde estava sendo construída a usina de dessalinização. As rodas de caminhões e veículos 4x4 haviam aberto sulcos profundos no terreno, provocando danos que os lentos sistemas do deserto levariam séculos para reparar.
No final, ali mesmo, na superfície antiga de suas áreas protegidas - e não nos folhetos para turistas ou nos textos oficiais sobre a política mineradora -, ficará registrada de fato a força e a sinceridade do empenho da Namíbia na preservação do seu ambiente.

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