A
cidade que esbanja luz na foto ao lado não está nos Estados Unidos, na Alemanha
ou em outro país rico do mundo. É Xangai, a "cabeça do dragão", a
locomotiva da China, nação que entre 2000 e 2008 viu seu consumo de energia se
multiplicar por 2. O salto foi provocado por novas fábricas, obras de
infraestrutura, consumidores ávidos por eletrodomésticos e carros. Será
justamente na Ásia, e pelos mesmos motivos, que a demanda por energia irá
crescer - e crescer de forma voraz - nas próximas décadas. A China, desde 2009
o maior consumidor de energia do mundo, deverá continuar sua escalada no ritmo
dos últimos anos. Espera-se que outros países sigam o mesmo caminho. Até 2030,
segundo estimativas da Agência Internacional de Energia, a fatia da Ásia no
consumo de energia global será maior do que a da América do Norte e a da Europa
juntas. Para o conjunto da humanidade, trata-se de uma conquista a comemorar.
Somente
na Índia, são 400 milhões de pessoas às escuras, número equivalente a duas
vezes a população brasileira. Mas, para iluminar o continente asiático - e, em
menor escala, o latino-americano e o africano -, o mundo terá de aumentar a
produção de energia em 30% até 2030. Trata-se de um desafio que já estava
colocado, mas que assumiu proporções dramáticas desde o início do ano.
Primeiro, as revoltas no Oriente Médio jogaram o preço do petróleo nas alturas.
Depois, a crise nuclear no Japão fez renascer antigos pavores. O desafio
energético, hoje mais do que nunca, preocupa não apenas os países emergentes, ansiosos
para seguir avançando, mas os ricos também, que terão de dividir os recursos
energéticos de que dispomos hoje.
De onde
virá a energia que vai iluminar nossas cidades e movimentar nossas fábricas?
Ninguém tem respostas acabadas, mas alguns consensos começam a surgir. "Se
não existisse o petróleo, teríamos de inventá-lo." A frase de Robert
Bryce, autor de Power Hungry - the Myths of "Green Energy" and the
Real Fuels of the Future ("Fome de energia - os mitos da energia verde e
os reais combustíveis do futuro", numa tradução livre), vale também para o
carvão e o gás natural. Nos anos 70, essas três fontes dominavam a matriz do
planeta. Hoje, ainda reinam - respondem por 81% da oferta. Daqui a 20 anos, a
participação deve cair, mas elas ainda terão uma fatia de 75%. "O petróleo
é essencial para o transporte, e o carvão é o responsável por 40% da geração de
energia elétrica do mundo", diz Lynn Orr, diretor do Instituto Precourt de
Energia da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Por isso, a ideia de que
podemos viver sem petróleo é simplesmente errada.
MUDANÇAS
LENTAS
Essa
dependência explica a esperança que o mundo passou a depositar na energia
nuclear na última década. Em 1973, ela representava apenas 1% da matriz. Hoje,
responde por 5,8%. O colapso na usina japonesa de Fukushima, porém, trouxe à
tona os fantasmas do acidente de Chernobyl, na Ucrânia. Os especialistas não
acreditam que o episódio - ainda sem desfecho - fará com que a energia
resultante da fissão dos átomos seja esquecida. "O que vai haver é uma
desaceleração", afirma William Hogan, professor de política energética
global da Universidade Harvard e editor do recém-publicado The Natural
Resources Trap (numa tradução livre, "A armadilha dos recursos
naturais"). "Cerca de 80% da eletricidade da França vem das usinas
nucleares", diz o físico José Goldemberg, um dos maiores especialistas em
energia do Brasil.
Eles
vão desativá-las? Claro que não." A China tem 14 usinas em operação, 26 em
construção e outras 28 planejadas. A Índia conta com 18 em funcionamento e 11
entre as que já começaram a ser montadas e as que ainda estão no papel. O
Brasil está construindo sua terceira usina, Angra 3. Pela crescente pressão da
opinião pública, é provável que governos de diferentes países decidam construir
usinas mais seguras e reformar as existentes, o que fará com que o custo da
energia suba.
Uma das
principais características do setor de energia é sua lentidão. As obras
costumam ser grandes e caras. A construção de hidrelétricas e de usinas
nucleares, a exploração de novos poços de petróleo e a operação de gasodutos
podem demorar anos. É por isso que se costuma comparar o setor a um
transatlântico - e navios desse porte não dão cavalos de pau. "É bom
ninguém esperar mudanças radicais de uma hora para outra", diz José de Sá,
sócio da consultoria Bain & Company, em São Paulo. As previsões da Agência
Internacional de Energia dão força a esse argumento. A estimativa é que as
renováveis, hoje responsáveis por 12% da matriz mundial, terão uma fatia de 17%
em 2030. Uma evolução, sem dúvida - mas não uma revolução.
Nos
países emergentes, a corrida das renováveis já começou. No ano passado, pela
primeira vez, o volume total de energia eólica instalada nos países em
desenvolvimento superou o dos Estados Unidos e o da Europa juntos. Só a China
colocou de pé 16 000 megawatts em 2010, pouco mais de uma Itaipu, e até 2035 é
o país que mais deverá investir na expansão de fontes renováveis de
eletricidade - algo como 1,4 trilhão de dólares. A Índia tem instalados 13 000
megawatts em eólicas e realizou em 2010 o primeiro leilão para incentivar
também a energia solar. Em março, a chanceler alemã Angela Merkel se
comprometeu a acelerar a transição para as energias limpas. Hoje, as turbinas
eólicas geram 9,3% da eletricidade da Alemanha, pouco se comparado à Dinamarca,
onde a fatia é de 24%.
Apesar
do justificado entusiasmo pelas fontes renováveis, a grande estrela do cenário
energético global nos próximos anos deverá ser o gás natural. Algumas razões
explicam seu status de bola da vez. Uma delas é o apelo ambiental. Entre os
fósseis, ele é de longe o mais limpo: emite cerca de 50% menos CO2 do que o
carvão e 40% menos do que o petróleo. "É o combustível ideal para a
transição a uma economia de baixo carbono", diz Adriano Pires, diretor do
Centro Brasileiro de Infraestrutura. Outro motivo é sua própria oferta.
Diferentemente do petróleo, a trajetória do gás como commodity é recente. Foi
só no início da década de 80 que a tecnologia para que ele pudesse ser
liquefeito e, assim, transportado sem o uso de gasodutos começou a ser
economicamente viável. Países como a Rússia, detentora das maiores reservas do
mundo, devem se beneficiar da nova onda do gás, assim como o Brasil - que pode
ter no pré-sal volume suficiente para entrar nessa disputa. No ano passado, a
Petrobras ofereceu ao mercado cerca de 2 milhões de barris por dia. Para 2020,
considerando o pré-sal, estima-se que o volume poderá chegar a 7 milhões. É um
chute calibrado. O que se sabe hoje é que as reservas de petróleo e gás podem
ser de até 44 bilhões de barris equivalentes de petróleo - mas o que o país
terá de um ou do outro só poderá ser conhecido quando a exploração começar.
Há
cerca de cinco anos, o desenvolvimento de uma tecnologia para extrair reservas
de gás que estão aprisionadas sob o solo - o chamado gás de xisto, ou shale
gas, em inglês - fez aumentar a oferta do combustível.
Nos
Estados Unidos, em 2000, o shale gas representava apenas 1% do abastecimento do
insumo. Hoje, ele é cerca de 25% e pode subir para 50% dentro de duas décadas.
Como quase toda geração de energia, essa também tem seus críticos. A técnica
para extração nos Estados Unidos inclui a injeção de agentes químicos no solo
para a retirada do gás, e tem causado polêmica. Numa cena do documentário
Gasland, indicado ao Oscar neste ano, americanos que arrendaram suas terras
para as empresas que exploram o shale gas mostram como a água que sai de suas
torneiras literalmente pega fogo - resultado da contaminação dos lençóis
freáticos. "Não acredito que a atividade será proibida, mas o risco
ambiental deve encarecer bastante a exploração", afirma Robert McNally, da
consultoria Rapidan Group, especializada em energia.
No lado
da oferta, não resta dúvida de que as energias sujas continuarão a ter um papel
importante nas próximas décadas. No lado da demanda, existe a certeza de que os
asiáticos, em particular, e os emergentes, em geral, vão ser a mola propulsora
do mercado. Por uma razão simples - sempre que uma pessoa avança
economicamente, seu consumo de energia se multiplica. Em média, um americano
consome cinco vezes mais do que um latino-americano, seis vezes mais do que um
asiático e dez vezes mais do que um africano. À medida que as populações vão
enriquecendo, crescem as demandas por habitação, transporte e energia elétrica.
Esse movimento é muito mais pronunciado em países em estágios iniciais de
desenvolvimento e industrialização. De 1990 a 2008, o PIB da China cresceu como
nenhum outro - a taxas médias anuais de 10%. Esse ritmo permitiu que um mundo
de gente saísse da pobreza. Segundo o FMI, em 2000 a renda média dos chineses
era de 945 dólares. Em 2010, atingiu 4 280 dólares. Nos últimos três anos, a
frota de carros e caminhões dobrou e chegou a 40 milhões. A perspectiva é que o
ritmo das vendas continue a galope, mas o país - felizmente - continua longe do
modelo americano. A China tem cerca de 30 carros para cada 1 000 habitantes -
ante 700 nos Estados Unidos.
Além
das ruas, as casas chinesas estão se transformando. As vendas de TVs no país
somaram 35 milhões de unidades em 2010 - um crescimento de 45% em relação ao
ano anterior. Dados como esse, associados ao fato de que a China é, desde 2009,
o maior exportador mundial de bens manufaturados, explicam o pulo da demanda da
indústria local por energia. Em 2000, o setor fabril chinês consumia 16% da
energia demandada pelo segmento industrial em escala global. Hoje, a proporção
é de 28%. A Índia segue um caminho semelhante. Segundo a fabricante coreana de
eletroeletrônicos LG, o país deve se transformar no seu maior mercado de
aparelhos de ar-condicionado em 2012. Hoje, o continente asiático já responde
por 30% do consumo mundial de energia. Até 2030, a fatia deverá subir para 38%.
Quem perderá o primeiro lugar serão os Estados Unidos, onde os aparelhos de
ar-condicionado têm 90% de penetração - na Índia, eles têm só 3%.
Os
Estados Unidos, aliás, hoje são vistos como exemplo a ser evitado. Em média, um
europeu gasta a metade da energia consumida por um americano, embora tenha
acesso ao mesmo conforto material. O principal motivo para a diferença é o
urbanismo.
Na
Europa, as grandes cidades são, em geral, compactas e contam com uma boa rede
de transporte público. Nos Estados Unidos do pós-guerra, a classe média decidiu
morar nos subúrbios e andar de um lado para o outro com seus automóveis.
"Pedir a um americano para largar o carro é o mesmo que falar para ele
abandonar a casa", diz Edward Glaeser, professor de economia na Universidade
Harvard e um dos maiores especialistas mundiais em urbanização. "O mundo
emergente, onde muito ainda está por construir, pode evitar esse erro."
BRASIL,
POTÊNCIA ENERGÉTICA?
Num
mundo faminto por energia, o Brasil aparece como solução, não como problema.
Poucos países contam com um potencial enérgico tão magnífico. Hoje, as reservas
nacionais de petróleo e gás natural somam 16,9 bilhões de barris equivalentes
de petróleo, mas podem mais que dobrar até 2020. Produzimos 90 000 megawatts de
energia elétrica nas usinas hidrelétricas, mas temos um potencial de 170 000
megawatts. Isso sem falar no etanol, na biomassa de cana, na energia eólica e
na solar. Mas entre ter o potencial e usá-lo há um mar de discórdias. O grosso
do que sobrou de rios a ser explorados está no Norte do país, mais precisamente
na Amazônia, onde a construção das usinas é questionada pelas ONGs.
"Nenhum
país deve desperdiçar potencial hidrelétrico", afirma uma das mais
importantes autoridades do país no tema ambiental, que prefere não se identificar.
"Mas precisamos discutir calmamente o assunto, não de maneira atabalhoada
e tardia como aconteceu com a usina de Belo Monte."
Se
quisermos mesmo aproveitar nosso potencial, alguns obstáculos terão de ser
superados. No momento, está faltando etanol nos postos de combustível, e a
resposta do governo até agora se resume a reclamar dos usineiros e das empresas
do setor. "Está faltando álcool, entre outros motivos, porque o consumo
cresceu muito com o carro flex, e a produção não acompanhou", afirma Pires.
"É preciso definir uma política para o etanol, e não transformá-lo ora em
herói, ora em bandido, como nos últimos anos."
O
governo podia definir também políticas claras para a eletricidade gerada da
biomassa da cana. Hoje, sobra bagaço, mas faltam nas usinas caldeiras modernas
de alta pressão para gerar energia e um sistema elétrico adaptado para jogá-la
na rede. O resultado é que no estado de São Paulo, berço do setor
sucroalcooleiro, apenas 30% das 184 usinas existentes exportam energia para a rede
elétrica. A modernização das caldeiras é necessária porque apenas 38% das que
estão em operação têm menos de dez anos. Não é, porém, um processo barato.
Calcula-se que ele custe até 4 milhões de reais por megawatt gerado, mas faltam
linhas de financiamento. "Sabemos do significado estratégico e ambiental
dessa energia e queremos encontrar uma maneira de viabilizá-la", diz José
Aníbal, secretário paulista de Energia. Adaptar a rede para receber a energia
das usinas é uma questão importante também para a indústria de energia eólica,
que começa a sair do papel. O país tem 930 megawatts de capacidade instalada de
energia dos ventos. É pouco. Quando os 4 000 megawatts vendidos nos últimos
leilões se transformarem em realidade, e isso deve acontecer até 2013, é provável
que deparem com o mesmo problema. Também não há ainda nenhuma diretriz clara
para a energia fotovoltaica - que converteria a incidência de sol em
eletricidade. Por tudo isso, o Brasil corre o risco de não aproveitar o
momento. Sabemos que a demanda por energia não vai parar de crescer.
PARECE
FÁCIL, MAS...
O
Brasil é um dos países com maior potencial de fontes de energia e pode ter seu
crescimento impulsionado por uma matriz diversificada. Mas há obstáculos nesse
caminho
Petróleo
e gás natural
O que
temos de reservas hoje - 16,9 bilhões de barris equivalentes de petróleo (BEP)
Potencial
para 2020 - 44 bilhões de barris equivalentes de petróleo(1)
O que
pode atrapalhar - As exigências sobre os índices de nacionalização dos
equipamentos podem atrasar e encarecer a exploração do pré-sal. O monopólio na
operação e a obrigatoriedade de 30% de participação da Petrobras nessas áreas
podem tornar a exploração refém da capacidade de investimentos da estatal
Hidrelétrica
O que
temos de reservas hoje - 90 000 megawatts
Potencial
para 2020 - 170 000 megawatts
O que
pode atrapalhar - A maior parte desse potencial inexplorado está na Região
Norte, mais precisamente na Amazônia, onde há muita resistência das ONGs à
construção de usinas, sobretudo as que possuem reservatórios e geram energia em
períodos de seca
Biomassa
de cana
O que
temos de reservas hoje - 3 600 megawatts
Potencial
para 2020 - 26 000 megawatts(2)
O que
pode atrapalhar - As usinas precisam investir em caldeiras de alta pressão mais
eficientes, mas o setor alega que não há linhas de crédito para essa
modernização. O sistema elétrico também precisa ser adaptado para coletar e
distribuir essa energia
Nuclear
O que
temos de reservas hoje - 2 000 megawatts
Potencial
para 2020 - 1 405 megawatts(3)
O que
pode atrapalhar - A usina de Angra 3 está prevista para entrar em operação em
2015. O incidente recente na usina de Fukushima, no Japão, no entanto, reacendeu
a antiga polêmica sobre os riscos dessa fonte de energia e pode atrasar o
projeto
Eólica
O que
temos de reservas hoje - 981 megawatts
Potencial
para 2020 - 350 000 megawatts
O que
pode atrapalhar - A indústria é incipiente no Brasil e não houve tempo para
medir seu real desempenho. O primeiro leilão de compra dessa energia aconteceu
em 2009 e só em 2016 o governo terá tido tempo para avaliar se os parques estão
entregando o prometido
Etanol
O que
temos de reservas hoje - 27 bilhões de litros
Potencial
para 2020 - 65 bilhões de litros(4)
O que
pode atrapalhar - O governo controla o preço da gasolina, que não acompanha as
altas do mercado internacional e, por isso, se torna artificialmente mais
atrativa que o etanol. Falta infraestrutura de armazenagem para reduzir a
variação de preço do biocombustível ao longo do ano
(1)
Estimativa Petrobras, sócios, OGX e cessão onerosa para 2020 *
(2)
Estimativa Unica para 2020
(3)
Dado leva em conta o início das operações de Angra 3
(4)
Estimativa Unica para 2020
Fontes:
ABEEólica, CBIE, EPE e Unica