Geografia da Amizade

Geografia da Amizade

Amizade...Amor:
Uma gota suave que tomba
No cálice da vida
Para diminuir seu amargor...
Amizade é um rasto de Deus
Nas praias dos homens;
Um lampejo do eterno
Riscando as trevas do tempo.
Sem o calor humano do amigo
A vida seria um deserto.
Amigo é alguém sempre perto,
Alguém presente,
Mesmo, quando longe, geograficamente.
Amigo é uma Segunda eucaristia,
Um Deus-conosco, bem gente,
Não em fragmentos de pão,
Mas no mistério de dois corações
Permutando sintonia
Num dueto de gratidão.
Na geografia
da amizade,
Do amor,
Até hoje não descobri
Se o amigo é luz, estrela,
Ou perfume de flor.
Sei apenas, com precisão,
Que ele torna mais rica e mais bela
A vida se faz canção!

"Roque Schneider"



Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Especialista em Turismo e Hospitalidade, Geógrafa, soteropolitana, professora.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A ECONOMIA DA CRIATIVIDADE




Um produto hoje se torna viável e útil muito mais pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design, comunicação etc., os chamados intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho físico. Trata-se de um deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram no século passado

O fator-chave de produção no século passado era a máquina. Hoje, é o conhecimento. Podemos chamar este, enquanto fator de produção, de capital cognitivo. O embate que hoje se trava no Brasil em torno da propriedade intelectual, ainda que se apresente sob a roupa simpática da necessidade de assegurar a remuneração do jovem que publica um livro ou do pobre músico privado do seu ganha-pão pela pirataria, envolve na realidade o controle do capital cognitivo. Nas palavras de Ignacy Sachs, no século passado a luta era por quem controlava as máquinas, os chamados meios de produção. Hoje, é por quem controla o acesso ao conhecimento. Estamos entrando a passos largos na sociedade do conhecimento, na economia criativa.

Como sempre, quando se trata de poderosos interesses, há uma profusão de enunciados empolados sobre ética, mas muito pouca compreensão, ou vontade de compreender, o que está em jogo. Este artigo busca trazer um pouco de explicitação dos mecanismos.
Podemos partir da construção teórica muito transparente que nos apresenta Clay Shirky, no seu Cognitive surplus(Excedente cognitivo). Primeiro, vem o próprio conceito de excedente cognitivo. Cada um de nós tem grande quantidade de conhecimentos acumulados, que nos vem tanto de estudos como de experiência prática. Compartilhamos apenas uma pequena parte desse conhecimento acumulado, e utilizamos menos ainda o nosso potencial. Somando o capital cognitivo acumulado em bilhões de pessoas no mundo, temos aí uma fonte impressionante de riqueza parada ou subutilizada.

Uma dimensão do uso desse capital cognitivo é a que utilizamos para a nossa sobrevivência, no emprego, nas pequenas negociações do cotidiano. Mas, de longe, a maior parte fica simplesmente armazenada na nossa cabeça, às vezes partilhada com filhos e amigos, na esperança que não repitam as nossas bobagens. E quando nos vem uma grande ideia, nem sempre a aproveitamos, pois não temos o meio de disponibilizá-la. Fica na nossa cabeça, com fortes possibilidades de mofo, a não ser que pertençamos ao ambiente de criação especializado que corresponde, ou surja um espaço colaborativo aberto em que possamos dar-lhe vazão. Em termos técnicos, é em grande parte um capital parado, ou travado por conceitos estreitos de interesses comerciais fixados na lógica da era dos bens materiais, destes que se trancam em casa ou na garagem.

O conhecimento é diferente. Um produto hoje se torna viável e útil muito mais pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design, comunicação etc., os chamados intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho físico. O computador que utilizamos poderá ter 5% de valor pela dimensão física do produto, e 95% pelo conhecimento incorporado. Trata-se de um deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram no século passado. A ideia que tenho não obedece às mesmas regras.

conhecimento muda as relações comerciais

As regras são diferentes porque o conhecimento, como principal fator de produção de bens e serviços na economia moderna, muda as relações comerciais. Se peço um quilo de arroz para o meu vizinho, devolverei o mesmo pacote de arroz, ou o valor equivalente, se não o meu vizinho terá prejuízo. Mas se ele me dá uma ideia sobre como preparar um bom prato com esse arroz, eu ganhei uma boa ideia e ele não perdeu nenhuma. Ele fica feliz por ensinar, eu por aprender. Por isso, aliás, é que todos nós oferecemos receitas, não o produto. O conhecimento é um fator de produção que, contrariamente ao arroz, aço, petróleo ou madeira, não reduz quando se consome. Pelo contrário, como cada ideia tende a gerar outras ideias por via de associações inovadoras, o estoque de ideias se multiplica. E como a ideia está se tornando o principal fator de geração de riqueza, todos enriquecem. A não ser, naturalmente, que alguém diga “esta ideia é minha”, e a tranque em barreiras virtuais.

A mudança é profunda. Tudo que estudamos em Economia está centrado na sua missão principal, que é a alocação racional de recursos escassos: alocação de bens que, se forem utilizados num produto, não estarão disponíveis para outros. No caso da ideia, do conhecimento, deixam de ser escassos por duas razões: primeiro, porque pela própria natureza não são bens rivais, quem comunica uma ideia não deixa de tê-la. Segundo, porque a ideia sendo imaterial, software da economia por assim dizer, pode ser transmitida em volumes virtualmente infinitos nas redes de internet que hoje conectam o planeta: 2 bilhões de pessoas hoje, e durante esta década provavelmente todos os habitantes, todas as escolas, todas as empresas, repartições públicas, hospitais ou postos de saúde. É a era da conectividade. Como o conhecimento deixa de ser escasso, em vez de buscar novas regras, empresas tentam torná-lo escasso, para que possam cobrar pelo acesso. Em vez de multiplicar riqueza, o sistema passa a restringi-la.

A mudança atinge também outro ponto básico da teoria econômica: o das motivações. Durante longo tempo, o nosso raciocínio econômico se viu paralisado pela magistral simplificação de que as motivações no comportamento econômico se reduzem à maximização racional de vantagens. Realmente, se é para apertar 3 mil parafusos por dia, a possível motivação não está no que fazemos, mas no quanto isso nos rende. Na economia criativa, há uma grande motivação subestimada: o prazer de realizar uma coisa útil, o gosto de contribuir, a excitação de uma coisa nova. Junte-se o prazer de construir algo de forma colaborativa com outras pessoas, a satisfação do trabalho competente, e temos a mistura necessária para uma profunda transformação nas regras do jogo. Nas palavras de Shirky: “Assumir que as pessoas são egoístas pode se tornar uma profecia que se autoconfirma, criando sistemas que asseguram muita liberdade individual para agir, mas não muito valor público ou gestão de recursos coletivos para o bem público”.1

Podemos ir além: hoje, colaborar não é apenas uma oportunidade, é uma necessidade. Para a sobrevivência de todos, o acesso às tecnologias que reduzem o impacto climático, por exemplo, não só não deve ser travado por patentes, como fomentado. Generalizar o conhecimento, ampliar a base planetária de pessoas conscientes, torna-se cada vez mais vital. Afinal, estamos gastando rios de recursos em educação para depois travar o acesso ao conhecimento?

De onde vem o sucesso da Wikipédia, a maior e mais eficiente enciclopédia que a humanidade já produziu? Vem simplesmente do prazer das pessoas contribuírem para o conhecimento geral. O imenso estoque planetário de conhecimentos acumulados na cabeça das pessoas, com a sua impressionante diversidade, pode simplesmente ser transformado em instrumentos úteis para todos. E na era da economia do conhecimento, quando este se torna o principal fator de produção de riquezas, colocar em rede tal capital cognitivo melhora a condição humana. Viver melhor não constitui uma remuneração, ainda que não monetária? Quase esquecemos o quanto o WWW e a conectividade planetária resultante estão dinamizando a produtividade de todos nós e melhorando a nossa qualidade de vida.

Quem administra a internet é uma instituição sem fins lucrativos. As ondas eletromagnéticas são um bem público.
Qual é a governança do sistema que resulta? Juntando-se os aportes de livros como Cognitive surplusde Clay Shirky; Wikinomicsde Don Tapscott e Anthony Williams; Grátis: O futuro dos preços, ou ainda A cauda longa de Chris Anderson;Apropriação indébita de Gar Alperovitz e Lew Daly;O futuro das ideias ou Remix de Lawrence Lessig;A era do acesso de Jeremy Rifkin, e outros, constatamos que estão se desenhando os mecanismos e a teoria desse novo universo, a economia do conhecimento.

Ladislau Dowbor
Le Monde Diplomatique

A CONCEPÇÃO ESTRATÉGICA DA DEFESA NACIONAL




Quando refletimos sobre Defesa Nacional, normalmente a primeira imagem que visualizamos é a de Forças Armadas bem equipadas e com sistemas de armas modernos e incorporando alto nível de tecnologia. Seria esta uma imagem adequada à realidade que envolve o que deveríamos pensar ser a Defesa Nacional? Que outros fatores teríamos ainda de considerar para que o conceito de Defesa Nacional fosse adequadamente apreendido?

Para facilitar a organização das idéias sobre esse conceito, usaremos o que registra a Política de Defesa Nacional (2005), ou seja, “conjunto de medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas”.

Ao considerarmos que as Forças Armadas representam, apenas, a parte visível de uma estrutura de defesa, somos obrigados a refletir na importância e na complexidade das atividades desenvolvidas por outros setores do Estado e que dão sustentação ao conceito de Defesa Nacional. Assim, para bem cumprir sua função, as Forças Armadas dependem, diretamente, da existência e eficácia desses setores, os quais contribuem decisivamente para a consolidação de uma real capacidade de Defesa.

Dentre esses setores, destacamos a competência de o Estado desenvolver atividades de Inteligência Estratégica; na criação e manutenção de uma robusta base industrial de defesa; na capacidade de desenvolver ciência & tecnologia e pesquisas de interesse da Defesa Nacional; na capacidade de desenvolver um eficiente processo de mobilização, tanto industrial, quanto de infra-estrutura para atendimento às necessidades específicas de defesa, quanto na capacitação de profissionais (civis e militares) voltados para a gestão do processo de Defesa; na existência de políticas públicas objetivas e voltadas para a orientação e fortalecimento das atividades de interesse da área de Defesa, etc. Assim, a capacidade e os resultados esperados de uma estrutura de Defesa serão tão eficazes quanto o forem os setores que a integram.

É considerando a complexidade inerente ao desenvolvimento dessas ações que se torna fundamental a existência de uma clara Concepção Estratégica do Estado voltada para a organização da Defesa Nacional. Essa Concepção Estratégica tornar-se-á base e guia para as ações ou estratégias a serem desenvolvidas, será referência para as prioridades dos investimentos a serem realizados, servirá de orientação para os resultados a serem alcançados por todos os setores que integram a estrutura de Defesa, servirá para dar sustentação às discussões políticas envolvendo o tema, etc. A importância de uma clara Concepção Estratégica relacionada à Defesa Nacional mostrará qual o nível de Defesa almejado e quais os benefícios decorrentes do esforço a ser empreendido pela sociedade.

O desenvolvimento de uma Concepção Estratégica não é uma tarefa fácil, pois isso envolve inúmeras variáveis que interferem permanentemente nesse processo. Dentre essas variáveis, a definição e a caracterização do que seja uma ameaça aos interesses vitais do Estado talvez seja uma das mais difíceis. Porém, será a clara definição do que seja uma ameaça, ou áreas de interesse, quando confrontados com os interesses de outros Estados, que dará início, ou incrementará, o processo de formação e fortalecimento da estrutura de defesa. Essa é uma discussão que deverá ocorrer inicialmente, e obrigatoriamente, na esfera política, envolvento os Poderes Legislativo e Executivo, considerando tratar-se de um assunto cujas decisões e consequências afetará a todos os cidadãos indistintamente. Uma dessas consequências, e que normalmente gera acaloradas discussões na esfera política, refere-se, por exemplo, à priorização de investimentos na área de defesa em detrimento da área social.

As diretrizes e as estratégias voltadas para a capacitação do Estado na área de Defesa têm implicações diretas na sobrevivência, na estabilidade e na preservação dos interesses vitais da própria nação, e em função da complexidade e do longo período para a consolidação das ações decorrentes, implica, também, na existência de uma Política de Estado que as oriente. Assim, o envolvimento do Poder Legislativo, do Poder Executivo e de grupos representativos da sociedade tornam a discussão em torno desse tema das mais complexas e importante para qualquer sociedade.

Embora nos países nos quais predomina um sistema democrático de governo a maioria das iniciativas políticas na área de Defesa ser do Poder Executivo, o desenvolvimento e a concretização das ações dependem, também, e diretamente, da participação do Poder Legislativo. As exigências de prolongadas discussões políticas envolvendo os interesses do Estado, bem como a prioridade e o rumo a ser dado às iniciativas nessa área, os altos investimentos financeiros necessários, a exigência de políticas públicas orientando esses esforços, etc., comprovam a importância da participação do Poder Legislativo nesse processo. Afinal, é no parlamento que ocorrem as discussões sobre as demandas e as necessidades de toda a sociedade. Ao funcionar como uma “caixa de ressonância” dos diversos grupos de interesses envolvidos, a discussão do tema Defesa Nacional ganha transparência, destaque e projeção.

A discussão política envolvendo a priorização, ou os esforços, em proveito do fortalecimento da estrutura de Defesa se destaca e ganha força quando da percepção de ameaças aos interesses vitais do Estado. Nessa etapa, um dos setores que se sobressai e tem papel primordial na assessoria do processo decisório é o setor de Inteligência Estratégica, contribuindo decisivamente para as decisões de nível estratégico do Estado. O principal objetivo da Inteligência Estratégica é identificar, coletar, analisar e interpretar dados e informações nas mais variadas áreas do conhecimento e dos assuntos de interesse do Estado que a desenvolve. Na prática, a Inteligência Estratégica torna-se a primeira instância da Defesa Nacional.

Quais as consequências possíveis na demora, ou fruto da incapacidade de um Estado em identificar ou caracterizar uma determinada ameaça aos interesses da nação? Uma consequência imediata seria a perda de uma vantagem comparativa frente a um potencial adversário, seja nos campos diplomático, econômico ou militar. A incapacidade de identificar e antecipar alterações, principalmente no cenário internacional, implicará na dificuldade de o Estado adotar as medidas e ações oportunas para a neutralização, ou destruição, das ameaças potenciais aos interesses vitais considerados, o que poderá comprometer a capacidade de manutenção da soberania ou da harmonia interna necessária ao desenvolvimento econômico e social.

Portanto, será a identificação e o correto dimensionamento de uma potencial ameaça, ou da imagem que o Estado pretende passar para a comunidade internacional, como forma de dissuação para fins de defesa de seus interesses, que orientará os esforços na busca de determinada capacidade de Defesa.

Porém, esse é um processo complexo e longo. Tendo por base a Concepção Estratégica, esse processo, em sua fase inicial, deverá envolver um completo diagnóstico da capacidade de o Estado desenvolver ações de Defesa, quando comparado com a capacidade de um potencial adversário ou grupos hostis. O diagnóstico estratégico é um processo permanente de monitoração dos fatores existentes no ambiente externo ao Estado e que podem afetar os interesses considerados vitais. Assim, o diagnóstico estratégico tem o objetivo de identificar, caracterizar e dimensionar as ameaças e riscos, tanto no presente quanto no futuro, e que possam afetar a soberania do Estado e as condições essenciais para o alcance do desenvolvimento e da paz social. Essa etapa do processo é considerada estratégica em função dos resultados obtidos influenciarem nas decisões políticas e estratégicas do Estado, bem como nas ações decorrentes.                                   

A etapa do diagnóstico estratégico consiste em avaliar a real capacidade de todos os setores da estrutura de Defesa, além da integração e harmonia existente entre os mesmos, buscando identificar onde se localizam os desequilíbrios estratégicos na área de Defesa. Em paralelo a esse trabalho, igual atividade estará sendo realizada para o dimensionamento, de forma realística e objetiva, das ameaças identificadas. O estudo comparativo e os resultados dessas atividades mostrarão onde deverão ser priorizados os esforços, de modo a conseguir a capacidade de Defesa que o Estado necessita.

É nesse sentido que a Concepção Estratégica da Defesa Nacional torna-se fundamental, ao balizar as estratégias a serem desenvolvidas e que terão como resultado a conquista de determinada capacidade de Defesa. Também, a existência de uma clara Concepção Estratégica servirá de guia para a consolidação de uma Política de Estado, ensejando políticas públicas que darão sustentação ao esforço a ser empreendido na busca da capacidade de Defesa pretendida.

Portanto, a existência de um claro e objetivo compromisso institucional, envolvendo os Poderes Legislativo e Executivo, além de importantes setores da sociedade, dará o respaldo necessário à Concepção Estratégica no direcionamento e desenvolvimento das estratégias necessárias à conquista da capacidade de Defesa que a nação precisa.
      
Analisando as ações voltadas para o fortalecimento da estrutura de Defesa, e ao considerarmos a complexidade das atividades a serem desenvolvidas, fica evidente a necessidade de uma orientação estratégica que organize e harmonize todo esse esforço, e é nesse sentido que uma clara Concepção Estratégica da Defesa Nacional se mostra fundamental. Ao apontar objetivamente qual a postura estratégica do Estado, ou seja, o que será feito para enfrentar potenciais ameaças; o porquê dessa postura, ou seja, quais os interesses do Estado que estão sendo defendidos em âmbito regional ou internacional; e, como pretende conquistar esses objetivos, ou seja, quais as estratégias que serão desenvolvidas; tornar-se-á claro para a sociedade qual a prioridade e os esforços sendo realizados e a razão disso. Também, servirá para mostrar à comunidade internacional o que o Estado considera seus interesses vitais e o preço que está disposto a pagar para defendê-los.

Ao refletirmos sobre o conceito de Defesa Nacional, torna-se destacada a importância de existir uma clara Política de Estado que dê respaldo às complexas atividades desenvolvidas pelos vários setores que integram a estrutura de Defesa, principalmente em função do longo tempo necessário para a conquista da capacidade requerida. Também, tal nível de política servirá para harmonizar os esforços e minimizar eventuais interrupções nesse processo, em função, também, de conflitos e interesses políticos em períodos distintos.

Outras vantagens da existência de uma clara Política de Estado são o de tornar mais claros os objetivos sendo buscados para a área de Defesa; o de estabelecer as responsabilidades das várias autoridades nos variados setores e níveis da estrutura do Estado; e, principalmente, o de evitar que uma área tão sensível e vital para a sobrevivência do Estado possa ficar à mercê de decisões pontuais, ou inócuas, ou de grupos políticos, que possam estar desvinculadas da realidade que cerca os reais interesses do Estado e da sociedade na esfera da Defesa Nacional.

Como conclusão deste ensaio, podemos afirmar que existe uma relação direta entre Concepção Estratégica e Defesa Nacional. Enquanto a Defesa Nacional envolve uma capacidade a ser buscada e mantida pelo Estado, de forma a preservar os interesses vitais do Estado; a Concepção Estratégica envolve uma orientação, uma diretriz política que explica o que deverá ser feito e o porquê disso, apontando a direção e harmonizando os esforços de variados setores do Estado no desenvolvimento de atividades complexas em proveito da Defesa Nacional. Claro que tudo isso deverá estar em perfeita sintonia com os dispositivos legais estabelecidos na Constituição Federal, além de que a Concepção Estratégica deverá refletir, claramente, a estratégia global de nosso Estado com vistas ao alcance dos objetivos estabelecidos na Política Nacional de Defesa.

A DESCOBERTA TARDIA DO HAITI



O projeto era o de escrever apenas dois trabalhos sobre o Haiti. Mostrar as cores do país na revista "Simples" e formular um texto teórico para a "Política Externa", dirigida por Celso Lafer. Saio de Porto Príncipe com travo na garganta que só pode se exprimir na urgência de um jornal. É preciso estômago para passar incólume pelos escombros de Cité Soleil, onde moram mais de 500 mil pessoas, envoltas em pequenas nuvens de fumaça de lixo queimando.

 

Ou para percorrer uma grande feira livre banhada por esgoto cobrindo nosso sapato. Ou saber que algumas pessoas dormem enquanto outras caminham à espera de seu turno para ocupar o estreito espaço. Ou para ouvir que o sonho de muitos é o de comer pelo menos uma vez a cada dois dias.

 

A idéia geral, quando o Brasil decidiu mandar tropas, era a de pacificar o Haiti, garantir uma transição que seria concluída com a escolha de novos governantes e adicionar um novo país estável ao continente.

 

O Haiti, portanto, mobilizou nossa melhor qualidade: o desejo de ajudar os que precisam de nossa ajuda. Mas acionou, simultaneamente, nosso grande defeito: a ignorância sobre a trajetória histórica de outros povos.

 

O Haiti não é um país viável a curto prazo. Não há como desatar, rapidamente, seus três nós górdios. De um ponto de vista econômico, não há clima, por exemplo, para desenvolver a indústria do turismo, bem-sucedida do outro lado da ilha, na República Dominicana. Do ponto de vista político, com as facções se dilacerando, como esperar estabilidade de um pleito em que os eleitores não têm carteira de identidade? Ou como projetar a eficácia de um comitê eleitoral que tem sete meses de vida e até agora não fez nada, exceto tentar ganhar uma graninha extra superfaturando um conserto de ar-condicionado? Como replantar as árvores e combater a erosão que devorou as terras haitianas?

 

Num processo de duas décadas, com esforço articulado das forças internas e comunidade internacional, isso é possível. No momento, basta conviver com os soldados para sentir como é delicada a posição das forças da ONU. De um lado, sob pretexto de desarmar, os setores mais ricos querem que os militares reprimam os miseráveis concentrados em Cité Soleil, Bel Air e outros pontos da cidade; de outro, os pobres de Porto Príncipe encaram os Urutus com gestos na boca e barriga, indicando que têm fome. Como se dissessem: são bonitos esses tanques pintados de branco; pena não podermos servi-los no almoço.

 

Num manual para funcionários, em 1994, os americanos, com sua simplicidade, definiram o Haiti de uma forma ideal para iniciantes: problemas internos e externos, cuja complexidade não vale a pena discutir aqui, fizeram com que as coisas não dessem certo no Haiti nos últimos 200 anos.

Basta desembarcar à noite, em Porto Príncipe, para perceber isso. A cidade está às escuras, iluminada apenas por velas dos ambulantes que ocupam os passeios, dia e noite. O trânsito é caótico não só pela ausência de sinais luminosos mas também por um certo desprezo ao critério de mão e contramão. Nos momentos em que viajava com militares, muitas vezes foi preciso intervir, como se fossem guardas de trânsito, para nos livrarmos da paralisia.

 

As ruas de Porto Príncipe contam sua história. Os carros são consertados ali e através dessas oficinas ao ar livre. Você percebe que a frota sobrevive na base da criatividade. Quando o taxista que me serviu me deu seu cartão e se dispôs a me ajudar, de novo, em dezembro, pensei: isso se seu carro resistir mais duas semanas.

 

Uma jornalista chorou ao ver meninos na feira usando o esgoto para lavar o rosto. O grande impacto, no entanto, é Cité Soleil. Aqueles escombros empoeirados colocam vários enigmas: bombardeio, incêndio ou são apenas casas construídas pela metade, uma espécie de símbolo do Haiti, um país inacabado? É um limite de pobreza que nos convida a redefinir a condição humana.

 

A ONU mandou tropas para conter a violência. Na verdade, os grupos armados nas favelas de Porto Príncipe são menos numerosos que os da favela do Rio. O único problema é que alguns são mobilizados por forças políticas, em circunstâncias pontuais.

 

Todo o conceito de segurança no Haiti está baseado numa ênfase militar. É um equívoco. A ONU ainda não manda dinheiro para projetos sociais. A exceção no momento é o Canadá, com uma ajuda humanitária a Gonaives, onde morreram 3.000 pessoas. Os projetos dos órgãos multilaterais levam de 18 a 36 meses para chegar à prática.

 

Até lá vamos rodar muita favela de Urutu, de vez em quando levando algumas pedradas. Não só porque os Urutus representam o poder ausente (o governo transitório é zero) mas porque, pela sua missão, têm de dar apoio à polícia do Haiti, que é, com toda a razão, odiada pelo povo.

Os americanos estão no limite, voltados para o Iraque e para o Afeganistão. Os franceses tentando se equilibrar na Costa do Marfim, com grandes gastos de reintegração dos europeus que voltam empurrados pelo conflito.

 

O Haiti está fora da agenda mundial e, de certa maneira, foi adotado pelo Brasil. É um povo cheio de energia, elegante e com uma grande sensibilidade plástica. Basta olhar os cartazes, a pintura dos veículos coletivos, os top-top, para entender por que produziram grandes pintores.

Uma forma de sair do pântano é, gradualmente, reorientar nossa presença militar. Contar menos com conflitos armados e mais com a possibilidade de ajudar, abrindo uma pequena estrada aqui, montando um hospital de campanha ali. Compartilhar a dor haitiana, ao longo dos tufões e tiranos, sem grandes esperanças de resolver, de estalo, um fracasso de dois séculos.

 

Nosso trabalho terá menos visibilidade, não ganharemos pontos para entrar no Conselho de Segurança da ONU. É obsceno usar a miséria e o desespero de um povo como trampolim político internacional. Não se trata de voltar as costas, mas apenas abrir nossas mentes e corações para o Haiti.

 

Fernando Gabeira,

Folha de São Paulo

208 milhões de pessoas no mundo são usuárias de drogas, aponta relatório da ONU

Aproximadamente 208 milhões de pessoas -- 4,8% da população adulta do mundo -- usaram drogas ilícitas ao menos uma vez em 2007. Metade delas usou pelo menos uma vez ao mês e, em média, cerca de 200 mil usuários morreram no ano passado em conseqüência do consumo de drogas. Os dependentes químicos correspondem a 0,6% da população e somam 26 milhões. Os dados foram revelados pelo Relatório Mundial Sobre Drogas 2008 divulgado pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC),no Dia Internacional de Combate ao Abuso e ao Tráfico Ilícito de Drogas.

O documento, publicado anualmente desde 2003, traz um balanço sobre o consumo de substâncias ilícitas no mundo e ressalta que a situação, apesar de preocupante, é estável e pode ser considerada um avanço das políticas de controle de drogas.



O aumento no número absoluto de usuários de 2006 para 2007 foi de aproximadamente 8 milhões de pessoas (na comparação com dados do relatório apresentado em 2006, que indicava cerca de 200 milhões usuários) e é considerado proporcional ao crescimento da população mundial no período. Com o índice de consumidores oscilando em torno de 4,7% a 5% nos últimos anos, o cenário registrado é de estabilidade pelo quarto ano consecutivo.


O UNODC compara os dados do relatório ao consumo de drogas lícitas, como álcool e tabaco, para mostrar que os resultados do controle de drogas são positivos. Segundo o texto, o cigarro afeta até 25% da população adulta e provoca cerca de 5 milhões de mortes ao ano, enquanto o álcool mata 2,5 milhões de pessoas no mesmo período.
"Embora o abuso de heroína, de cocaína e de drogas sintéticas seja devastador para os indivíduos, essas drogas não tiveram, comparativamente, um impacto tão grave sobre a saúde pública mundial como o álcool e o tabaco", disse o diretor-executivo do UNODC, Antonio Maria Costa.
O documento, ao mesmo tempo, traz perspectivas sombrias. O aumento repentino no plantio de ópio no Afeganistão e de coca na Colômbia coloca em risco a estabilidade constatada pela ONU e atrapalha o verdadeiro avanço, que é a diminuição significativa da oferta e da demanda por drogas.


Por isso, Costa aponta três caminhos a serem traçados a partir de 2008 pelas políticas de controle de substâncias ilícitas: investir em saúde pública tanto quanto em segurança pública e aplicação das leis; atuar nos países produtores (especialmente Afeganistão, Colômbia e Mianmar), fortalecendo governos capazes de combater o tráfico de drogas, o crime organizado, a corrupção e o terrorismo; e garantir os direitos humanos em países que ainda adotam penas severas para usuários, como China e Indonésia. "A dependência de drogas é uma questão de saúde e que deve ser tratada dessa maneira, com prevenção e tratamento", ressalta.


Produção crescente
A produção de ópio no Afeganistão atingiu um nível sem precedentes e dobrou entre 2005 e 2007, alcançando 8,87 mil toneladas no ano passado. Também houve aumento de 22% no cultivo de papoula no sudeste da Ásia, depois de seis anos consecutivos de queda, e de 29% em Mianmar.

A Colômbia, maior produtora de cocaína do mundo, viu sua plantação de coca aumentar 27%, chegando a 99 mil hectares. Peru e Bolívia também registraram aumento no cultivo -- 4% e 5%, respectivamente. A colheita, no entanto, não rendeu o esperado e a produção dos três países subiu apenas 1%, somando 992 toneladas da droga.
Outro dado assustador é o tamanho do mercado consumidor de maconha e haxixe, o maior entre as drogas. O UNODC estima que cerca de 166 milhões de pessoas usaram esses tipo de droga em 2006 - 3,9% da população mundial adulta. A Oceania lidera com 14,5% da população usuária, seguida da América do Norte (10,5%) e da África (8%). A produção foi 8% mais baixa em 2007 que em 2004, somando 41,4 toneladas, mas o Afeganistão passou a ser um grande produtor de haxixe e nos países desenvolvidos o cultivo em lugares fechados tem gerado tipos mais potentes de maconha.
Já a produção mundial de estimulantes tem permanecido ente 450 e 500 toneladas desde 2000. Cerca de 0,6% da população (24,7 milhões de pessoas) consome anfetaminas e 0,2% (9 milhões de pessoas) consomem ecstasy no mundo. Mais da metade dos usuários de anfetaminas está na Ásia.

ONU alerta que Afeganistão pode ter superado o Marrocos no cultivo de maconha


A ONU advertiu hoje que uma das tendências mais preocupantes no mundo das drogas é que o Afeganistão, o maior produtor de ópio do planeta, se transformou também em um grande plantador de maconha, a ponto de poder tirar do Marrocos o posto de grande produtor do planeta.
Esta é a conclusão do Relatório Mundial sobre as Drogas 2008, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime (UNODC), que, no entanto, afirma que a produção de resina de maconha (haxixe) caiu no mundo todo, das 6.600 toneladas de 2005 para as 6.000 de 2006.
Afeganistão Maior produtor de ópio do mundo
 - 193 mil hectares de plantio
 - 8,2 mil toneladas de produção
 - 82% do plantio mundial de papoula
 - Crescimento de 17% em 2007
  
"Em termos de cultivo, vimos um grande aumento no Afeganistão, até alcançar os 70 mil hectares. Estes números estão muito perto dos dados que temos do cultivo no Marrocos em 2005", disse à "Agência Efe" Thomas Pietschmann, um dos autores do relatório.
 Esse ano é o último do qual a ONU tem dados sobre o Marrocos, por isso a comparação é difícil, mas foi observada uma grande redução do cultivo a respeito de anos anteriores, disse.
 "A tendência é que o Afeganistão está no caminho de se transformar no primeiro e Marrocos de perder esse posto, mas não podemos saber se já passou", disse Pietschmann.
A UNODC indica que mais que duplicou o cultivo da maconha no Afeganistão, dos 30 mil hectares em 2005 para 70 mil em 2007.
Enquanto isso, no Marrocos, diminuiu a superfície de cultivo nos últimos anos: de um número máximo de 134 mil hectares em 2003 para 76,4 mil hectares em 2005.
Mesmo assim, o especialista deixou claro que "o Afeganistão poderia ter superado o Marrocos em termos de extensão do cultivo, mas não de produção (de resina de maconha). Nisso o Marrocos ainda é o primeiro".
No entanto, o diretor do UNODC, Antonio Maria Costa, afirmou em comunicado divulgado hoje, em Viena, que "são observadas tendências preocupantes: o Afeganistão se transformou em um grande produtor de resina de maconha e supera, talvez, o Marrocos".
A maconha é a droga ilegal mais consumida do mundo. Segundo a ONU, cerca de 166 milhões de pessoas a consomem, o que representa 3,9% da população mundial.
O Afeganistão é o principal produtor de ópio do mundo, com 193 mil hectares, que representam 92% do total, e seu cultivo se concentra em cinco províncias do sul sob controle talibã.

A ARMA DOS PODEROSOS

Um norte-americano fala do terrorismo praticado pelos Estados Unidos, país que não respeita as formas judiciais internacionalmente instituídas. A América Latina foi um dos principais alvos da violência

Devemos partir de dois postulados. O primeiro é que os acontecimentos de 11 de setembro constituem uma atrocidade terrível, provavelmente a perda instantânea de vidas humanas mais importante da história, guerras à parte. O segundo postulado é que nosso objetivo deveria ser reduzir o risco de reincidência de tais atentados, sejamos nós ou outras pessoas as suas vítimas. Se você não aceita esses dois pontos de partida, o que vem a seguir não lhe diz respeito. Se você os aceita, muitas outras questões se apresentam.

Comecemos pela situação no Afeganistão. Haveria, no Afeganistão, vários milhões de pessoas ameaçadas pela fome. Isso era verdadeiro já antes dos atentados; elas sobreviviam graças à ajuda internacional. No dia 16 de setembro, os Estados Unidos exigiram, no entanto, que o Paquistão suspendesse os comboios de caminhões que levavam alimentos e outros produtos de primeira necessidade para a população afegã. Essa decisão não provocou reação alguma no Ocidente. A retirada de parte do pessoal humanitário tornou a assistência ainda mais problemática. Uma semana após o início dos bombardeios, a ONU considerava que a aproximação do inverno tornaria impossíveis as entregas, já reduzidas à quantidade de alimentos apenas suficiente para sobreviver devido aos ataques da aviação norte-americana.

Quando organizações humanitárias, civis e religiosas, e o relator da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) pediram a suspensão dos bombardeios, a informação nem sequer foi publicada pelo New York Times; o Boston Globe dedicou-lhe uma linha inserida num artigo que tratava de outro assunto: a situação na Caxemira. Em outubro passado, portanto, a civilização ocidental resignou-se a ver morrerem centenas de milhares de afegãos. No mesmo momento, o chefe dessa mesma civilização informava que não se dignaria a responder às propostas afegãs de negociação sobre a questão da entrega de Osama bin Laden nem à exigência de uma prova que permitisse fundamentar uma eventual decisão de extradição. Só seria aceita uma capitulação incondicional.

Mas voltemos ao 11 de setembro. Nenhum crime, nada foi mais mortífero na história — ou, então, o foi durante um período mais longo. De resto, as armas, desta vez, visaram a um alvo não habitual: os Estados Unidos. A analogia com Pearl Harbour, muitas vezes evocada, é inadequada. Em 1941, o exército nipônico bombardeou bases militares em duas colônias de que os Estados Unidos se haviam apossado em condições pouco recomendáveis; os japoneses não atacaram o território norte-americano propriamente dito.


Reação diferente aos atentados

Durante quase duzentos anos, nós, norte-americanos, expulsamos ou exterminamos populações indígenas, isto é, milhões de pessoas; conquistamos a metade do México; saqueamos a região do Caribe e da América Central; invadimos o Haiti e as Filipinas (matando, na ocasião, 100 mil filipinos). Depois, após a 2ª Guerra Mundial, estendemos nosso domínio sobre o mundo da maneira que se conhece. Mas, quase sempre, éramos nós que matávamos, e o combate se travava fora de nosso território nacional.

Ora, isso é fácil de constatar quando se é questionado, por exemplo, sobre o IRA e o terrorismo: as questões dos jornalistas são muito diferentes, dependendo de que lado do mar da Irlanda exercem sua profissão. Em geral, o planeta aparece sob um outro aspecto, variando conforme se segure o chicote há muito tempo ou se tenha tomado as chicotadas durante séculos. No fundo, talvez seja por isso que o resto do mundo, mesmo se mostrando univocamente horrorizado pelo destino das vítimas, não tenha reagido da mesma maneira que nós aos atentados de Nova York e Washington.
Para compreender os acontecimentos de 11 de setembro, é preciso distinguir, por um lado, os executores do crime, e, por outro, o imenso leque de compreensão de que esse crime se beneficiou, inclusive entre os que a ele se opunham. Os executores? Supondo-se que se trate da rede de Bin Laden, ninguém sabe mais sobre a gênese desse grupo fundamentalista do que a CIA e seus asseclas: eles o incentivaram à nascença. Zbigniew Brzenzinski, diretor da Segurança Nacional do governo Carter, felicitou-se pela ‘‘armadilha’’ preparada para os soviéticos em 1978, que consistia — por meio de ataques de mujahidin (militantes islâmicos organizados, armados e treinados pela CIA) contra o regime de Cabul — em atrair os soviéticos para o território afegão, no final do ano seguinte. Somente depois de 1990 e da instalação de bases norte-americanas permanentes na Arábia Saudita, terra sagrada para o Islã, é que esses combatentes se voltaram contra os Estados Unidos.

Para tentar explicar o amplo leque de simpatia com que contam as redes de Bin Laden, no entanto, inclusive nas camadas dirigentes dos países do hemisfério Sul, é necessário partir da raiva que provoca o apoio dos Estados Unidos a todo tipo de regimes autoritários ou ditatoriais; é necessário lembrar-se da política norte-americana que destruiu a sociedade iraquiana, consolidando o regime de Saddam Hussein; é necessário não se esquecer do apoio de Washington à ocupação israelense de territórios palestinos desde 1967. No momento em que os editoriais do New York Times sugerem que ‘‘eles’’ nos detestam porque defendemos o capitalismo, a democracia, os direitos individuais, a separação entre a Igreja e o Estado, o Wall Street Journal, melhor informado, explica, após ter ouvido banqueiros e executivos não-ocidentais, que eles ‘‘nos’’ detestam porque impedimos a democracia e o desenvolvimento econômico. E demos apoio a regimes brutais, e até terroristas.

Prioridade que não é de hoje

Nos meios dirigentes ocidentais, a guerra contra o terrorismo foi apresentada como se fosse uma ‘‘luta dirigida contra um câncer disseminado por bárbaros’’. Mas essas palavras e essa prioridade não são de hoje. Há vinte anos, o presidente Ronald Reagan e seu secretário de Estado, Alexander Haig, já as enunciavam. E, para conduzir esse combate contra os adversários depravados da civilização, o governo norte-americano instalou, então, uma rede terrorista internacional de amplitude sem precedentes. Praticaram-se inúmeras atrocidades de uma ponta à outra do planeta, e essa rede dedicou o essencial de seus esforços à América Latina.

Um caso, o da Nicarágua, não deixa margem à dúvida: realmente, foi decidido de modo categórico pelo Tribunal Penal Internacional de Haia e pela ONU.

Pergunte-se a você mesmo quantas vezes esse precedente indiscutível de uma ação terrorista — à qual um Estado de direito quis responder através dos meios do direito — foi evocado pelos principais comentaristas. E, no entanto, tratava-se de um precedente ainda mais radical que os atentados de 11 de setembro: a guerra do governo Reagan contra a Nicarágua provocou 57 mil vítimas, entre as quais 29 mil mortos, e a ruína de um país, talvez de forma irreversível.

Na época, a Nicarágua reagiu. Não explodindo bombas em Washington, mas submetendo o caso ao Tribunal Penal Internacional. Este, no dia 27 de junho de 1986, decidiu categoricamente em favor das autoridades de Manágua, condenando o ‘‘uso ilegal da força’’ pelos Estados Unidos (que haviam minado os portos de Nicarágua), e determinando que Washington pusesse fim ao crime, sem esquecer de pagar vultuosas perdas e danos. Os Estados Unidos replicaram que não acatariam a sentença e que passariam a não reconhecer a jurisdição do Tribunal.

A Nicarágua pediu então ao Conselho de Segurança da ONU a aprovação de uma resolução exigindo que todos os países respeitassem o direito internacional. Não se citava nenhum em particular, mas todos compreenderam. Os Estados Unidos votaram contra a resolução. Portanto, hoje, são o único país que, simultaneamente, foi condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça e se opôs a uma resolução exigindo... o respeito ao direito internacional. Depois, a Nicarágua dirigiu-se à Assembléia Geral da ONU. A resolução que propusera teve três votos contra: dos Estados Unidos, de Israel e de El Salvador. No ano seguinte, a Nicarágua reivindicou a votação da mesma resolução. Desta vez, só Israel defendeu a causa do governo Reagan. A essa altura, a Nicarágua não dispunha de mais nenhum meio legal. Todos haviam fracassado em um mundo regido pela força. Este precedente não dá margem a qualquer dúvida. Quantas vezes falamos sobre ele na universidade, nos jornais?

Acontecimentos incômodos

Essa história revela várias coisas. Em primeiro lugar, que o terrorismo funciona. A violência também. Em seguida, que é um equívoco pensar que o terrorismo seria o instrumento dos fracos. Como a maioria das armas mortíferas, o terrorismo é, antes de tudo, a arma dos poderosos. Quando se diz o contrário, é unicamente porque os poderosos controlam também os aparelhos ideológicos e culturais, que permitem que o terror deles seja visto como uma coisa diferente do terror. Um dos meios mais comuns de que dispõem para chegar a tal resultado é fazer com que acontecimentos incômodos desapareçam da memória; assim, mais ninguém se lembra deles. Em suma, tamanho é o poder da propaganda e das doutrinas norte-americanas que se impõe, inclusive, às suas vítimas. Vá à Argentina e tente lembrar o que acabo de dizer: ‘‘Ah, sim, mas tínhamos esquecido!’’

A Nicarágua, o Haiti e a Guatemala são os três países mais pobres da América Latina. Também estão entre os que os Estados Unidos intervieram militarmente. A coincidência não é necessariamente acidental. E tudo isso aconteceu num clima ideológico marcado por declarações entusiásticas dos intelectuais ocidentais. Há alguns anos, a auto-congratulação fazia o maior sucesso: fim da história, nova ordem mundial, Estado de direito, ingerência humanitária etc. Era coisa muito freqüente, enquanto deixávamos que se cometessem atrocidades em grande quantidade. Pior, contribuíamos para isso de maneira ativa. Mas quem falava a respeito? Uma das proezas da civilização ocidental é, talvez, tornar possível esse tipo de inconseqüência numa sociedade livre. Um Estado totalitário não dispõe desse dom.

O terrorismo e o direito dos povos

Que é o terrorismo? Nos manuais militares norte-americanos, define-se como terror a utilização calculada, para fins políticos ou religiosos, da violência, da ameaça de violência, da intimidação, da coerção ou do medo. O problema de tal definição é o fato de se aplicar muito exatamente ao que os Estados Unidos chamaram de guerra de baixa intensidade, reivindicando esse gênero de prática. Aliás, em dezembro de 1987, quando a Assembléia Geral da ONU aprovou uma resolução contra o terrorismo, um país se absteve de votar, Honduras, e dois outros votaram contra, os Estados Unidos e Israel. Por que fizeram isso? Por causa de um parágrafo da resolução que indicava que não se tratava de questionar o direito dos povos de lutarem contra um regime colonialista ou contra uma ocupação militar.

Ora, na época, a África do Sul era aliada dos Estados Unidos. Além dos ataques contra seus vizinhos (Namíbia, Angola etc.), o que provocou a morte de centenas de milhares de pessoas e acarretou uma destruição avaliada em 60 bilhões de dólares, o regime racista de Pretória enfrentava, dentro do país, uma força classificada de ‘‘terrorista’’, o African National Congress (ANC). Quanto a Israel, ocupava ilegalmente territórios palestinos desde 1967, outros no Líbano desde 1978, guerreando, no sul desse país, contra uma força classificada por ele e pelos Estados Unidos de ‘‘terrorista’’, o Hezbollah. Nas análises habituais do terrorismo, tal tipo de informação ou de evocação não é comum. Para que as análises e os artigos de imprensa sejam considerados respeitáveis, é melhor, realmente, que se situem do lado bom, ou seja, o dos braços melhor armados.

Uma dívida de gratidão

Na década de 90, foi na Colômbia que ocorreram as piores agressões aos direitos humanos. A Colômbia foi o principal destinatário da ajuda militar norte-americana, sem considerar Israel e Egito, que constituem casos à parte. Até 1999, logo atrás desse país, o primeiro lugar cabia à Turquia, a quem os Estados Unidos entregaram uma quantidade crescente de armas desde 1984. Por que esse ano? Não que a Turquia, membro da Otan, devesse enfrentar a União Soviética, já em via de desintegração na época, mas para que pudesse comandar a guerra terrorista contra os curdos. Em 1997, a ajuda militar norte-americana à Turquia ultrapassou a que esse país havia obtido durante todo o período de 1950-1983, o da guerra fria. Resultados das operações militares: 2 a 3 milhões de refugiados, dezenas de milhares de vítimas, 350 cidades e vilarejos destruídos. À medida que a repressão se intensificava, os Estados Unidos continuavam a fornecer cerca de 80 % das armas usadas pelos militares turcos, acelerando mesmo o ritmo de suas entregas. A tendência foi revertida em 1999. O terror militar, naturalmente classificado de ‘‘contra-terror’’ pelas autoridades de Ancara, havia, então, atingido seus objetivos. É o que quase sempre acontece quando o terror é empregado por seus principais utilizadores: as potências estabelecidas.

No caso da Turquia, os Estados Unidos não lidaram com um ingrato. Washington lhe entregara aviões F-16 para bombardear sua própria população: ela os utilizou em 1999 para bombardear a Sérvia. Depois, alguns dias após o 11 de setembro passado, o primeiro ministro turco, Bülent Ecevit, informava que seu país participaria com entusiasmo da coalizão norte-americana contra a rede de Bin Laden. Explicou, na oportunidade, que a Turquia havia contraído para com os Estados Unidos uma dívida de gratidão que remontava à sua própria ‘‘guerra anti-terrorista’’ e ao apoio inigualável de Washington. É verdade que outros países apoiaram a guerra de Ancara contra os curdos, mas nenhum com tanto zelo e eficácia quanto os Estados Unidos. Esse apoio contou com o silêncio, ou (talvez a palavra seja mais adequada) a subserviência das classes cultas norte-americanas. Porque não ignoravam o que se passava. Afinal de contas, os Estados Unidos são um país livre; os relatórios das organizações humanitárias sobre a situação no Curdistão eram de domínio público. Portanto, na época, nós optamos por contribuir para as atrocidades.

O que fazer na situação atual?

Nossa coalizão contra o terrorismo conta com outros recrutas de estatura. O Christian Science Monitor, sem dúvida um dos melhores jornais no que se refere à abordagem do noticiário internacional, confiou, por exemplo, que alguns povos que gostavam pouco dos Estados Unidos começavam a respeitá-los mais, particularmente felizes por vê-los comandar uma guerra contra o terrorismo. O jornalista, que, entretanto, é especialista em assuntos relativos à África, citava o caso da Argélia como principal exemplo dessa virada. Deveria saber, então, que a Argélia dirige uma guerra terrorista contra seu próprio povo. A Rússia, que dirige uma guerra terrorista na Chechênia, e a China, autora de atrocidades contra os que classifica de separatistas muçulmanos, também aderiram à causa norte-americana.

Que seja. Mas o que fazer na situação atual? Um radical tão extremista quanto o papa sugere, diante do crime de 11 de setembro, procurar os culpados e depois submetê-los a julgamento. Porém, os Estados Unidos não querem recorrer às formas judiciais normais; preferem não apresentar prova alguma e se opõem à existência de uma jurisdição internacional. Mais ainda, quando o Haiti reivindicou a extradição de Emmanuel Constant (considerado responsável pela morte de milhares de pessoas após o golpe de Estado que depôs o presidente Jean-Bertrand Aristide, no dia 30 de setembro de 1991) e apresentou provas de sua culpa, o pedido não teve qualquer efeito em Washington. Nem sequer foi objeto de qualquer tipo de discussão.

Lutar contra o terrorismo implica reduzir o grau do terror, e não aumentá-lo. Quando o Exército Republicano Irlandês (IRA) comete um atentado em Londres, os britânicos não destroem Boston, cidade onde o IRA tem muito apoio, nem Belfast. Procuram os culpados e, na seqüência, os julgam. Uma forma de reduzir o grau de terror seria parar de contribuir para ele. Depois, refletir sobre as orientações políticas que criaram uma logística de apoio da qual, em seguida, se aproveitaram os mandantes do atentado. Nas últimas semanas, a tomada de consciência, pela opinião pública norte-americana, dos vários tipos de realidades internacionais (de cuja existência apenas as elites suspeitavam) constitui, talvez, um passo nesse sentido.
Noam Chomsky
Tradução de Iraci D. Poleti
Correio Brasiliense

A AÇÃO CONVENIENTE DAS ONGS


A mesma formação e, às vezes, as mesmas idéias: assim funciona o grande mercado de organizações não-governamentais inspiradas por modelos norte-americanos

A sociologia tem muito a dizer nos debates sobre a globalização. Porque, se as análises eruditas são prolixas em diagnósticos promocionais ou críticos, elas se mantêm muito discretas sobre as práticas de especialistas e contra-especialistas que são atores essenciais desse processo.

O estudo da governança mundial representa um mercado valorizado e vantajoso para os produtores do Direito, da Economia ou de Ciência Política. Para além das suas divergências científicas ou ideológicas, esses produtores têm em comum o fato de encarar seriamente os desafios da globalização. Fazendo como se ela fosse uma realidade – a promover, a combater ou a controlar –, mobilizam recursos sociais e institucionais que contribuem para fazê-la existir, como aposta política, mas igualmente como canteiro em torno do qual se empenham os especialistas. Enquanto jogam a bola de um fórum a outro, os protagonistas têm todo interesse em não minar esse novo espaço de poder.


Mercado elitista e protegido

O mercado da avaliação internacional é elitista e protegido. Para acessá-lo, é necessário dispor de competências culturais e lingüísticas. Antes de serem reforçadas e legitimadas por cursos escolares internacionais muito dispendiosos, as tendências ao internacional são privilégio dos herdeiros de linhagens familiares cosmopolitas. Incluindo no meio certas críticas da globalização, que se inscrevem em redes internacionais muitas vezes marcadas pela influência norte-americana. Porque as grandes organizações não-governamentais (ONGs) multinacionais recrutam jovens profissionais entre os melhores diplomados dos campi do Ivy League, nos Estados Unidos. Ora, o acesso a essas escolas de elite – cujo custo pode exceder 40 mil dólares por ano (98.480 reais) – é reservado essencialmente aos herdeiros de um establishment liberal, que – “noblesse oblige” – sempre cultivou certa forma de idealismo e universalismo.

Graças a tal recrutamento, certas organizações militantes, certas ONGs, dispõem de um viveiro constantemente renovado de competências. Tão motivadas quanto reconhecidas, elas se tornam parcerias críticas das multinacionais e das nações. Essas colaborações, mal remuneradas, mas ricas de experiência, não excluem de modo algum carreiras posteriores nas instituições de Estado, os grandes gabinetes de análises, até mesmo as multinacionais. Os profissionais do militantismo reencontrarão ali seus antigos condiscípulos, e poderão mesmo superá-los. As aprendizagens militantes desse tipo permitem, com efeito, adquirir algumas das chaves essenciais para a hora da "globalização": uma caderneta de endereços, mas também uma habilidade política que combina a visibilidade mediática e a discrição do lobby, sem esquecer uma reputação bem útil no caso de reconversão posterior como "empresário moral".

Assim, Benjamin Heineman, formado em Harvard, Oxford e Yale, começa o seu percurso profissional dedicando seus três primeiros anos a um gabinete jurídico de interesse público financiado pela fundação Ford. Isso o conduz a importantes funções na administração Carter, antes de se tornar (onde ficou por dezessete anos) diretor jurídico da General Electric, principal multinacional do planeta. Atualmente é vice-presidente. Exemplar, este perfil atribui a ele uma forte legitimidade no mundo profissional e patronal, ao qual ele se engaja em prol da deontologia e maior responsabilidade social.


Herança colonial

As características da nova geração dos ativistas da globalização valem, principalmente, para seus predecessores. A facilidade cultural e lingüística, freqüentemente cultivada desde mais a jovem idade em estabelecimentos escolares elitistas, como as escolas bilíngües (particularmente nos países em desenvolvimento), serve de passaporte para o acesso à formação universitária estrangeira, cujo custo, assumido em grande parte pelas famílias, reforça o efeito de seleção social.

Essa formação no estrangeiro das elites nacionais dos países dependentes constitui uma herança do modelo colonial trazido pelo novo imperialismo. Os Estados Unidos impuseram sua hegemonia por meio de investimentos educativos, que remodelaram os cursos universitários dos futuros responsáveis governamentais sobre economia e ciência política. Os grandes campi privados do Ivy League servem assim de lugar preferencial à constituição das novas elites, tanto nacionais como internacionais. Compensando a maior concorrência no ensino superior nacional, ligada ao afluxo de estudantes, as formações remotas e dispendiosas permitiram as diferentes burguesias de Estado privilegiar os seus herdeiros, reservando-lhes, de fato, o acesso aos diplomas estrangeiros prestigiosos. Essa estratégia, comum às elites de numerosos países, contribuiu para "a unificação do campo mundial da formação dos líderes".

Por meio da denúncia das velhas ideologias coloniais em benefício de novos universais – o desenvolvimento, o mercado, o Estado de Direito –, a potência hegemônica americana deu um golpe duplo. Desqualificou as redes de influência que asseguravam a perenidade do modelo neocolonial europeu, reorientando ao mesmo tempo para os seus próprios campi os circuitos internacionais de formação das elites periféricas. Por conseqüência, a fuga dos cérebros para os mercados profissionais mais remuneradores.


Jogo duplo

Os dois espaços do nacional e do internacional são perfeitamente encaixados nas estratégias de reprodução das elites. No mercado da avaliação internacional, os operadores dominantes são os que podem mobilizar títulos e diplomas autenticados por seus Estados de origem. No inverso, um capital internacional de competências e de relações representa uma vantagem não negligenciável nas estratégias nacionais de poder. Ser um antigo aluno da ENA [Escola Nacional de Administração] ou politécnico não prejudica certamente uma carreira posterior nas instituições internacionais; ser diplomado em Harvard não impede de forma alguma de se tornar ministro em Paris. Um pequeno grupo de privilegiados pode simultaneamente fazer valer a sua notoriedade nacional para ser ouvido na cena internacional e investir no internacional para reforçar as suas posições no campo do poder nacional. Neste último caso, basta explicar que eles poderão, assim, melhor promover os interesses do país na concorrência mundial.

Tais estratégias de jogo duplo valem, principalmente, para as grandes instituições filantrópicas privadas – como as fundações Ford, Rockefeller, Soros – que se encontram doravante na vanguarda da globalização "humanizada". Ao mesmo tempo que financiavam o desenvolvimento internacional das grandes ONGs que militam para os direitos da pessoa ou para a defesa do meio ambiente, contribuíam para a propagação internacional dos campi que produzem e que difundem a nova ortodoxia liberal: mais da metade dos presidentes de bancos centrais são diplomados em economia geralmente nas grandes universidades americanas; mais de um terço são antigos membros do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou do Banco Mundial. A globalização valoriza, assim, um espaço da "governança" internacional cujas instituições e práticas se inspiram no modelo norte-americano.

Paradoxalmente, as divisões no império fazem a sua diferença. A astúcia da razão imperial é que ela exporta suas lutas internas: mesmo a contestação do modelo americano se inspira nas análises (multiculturalismo, mestiçagem) e nos métodos de luta (invocação da "sociedade civil" e recurso à mídia) correntes nos Estados Unidos. Para neutralizar os que justificam suas políticas conservadoras apoiando-se nas "internacionais do establishment" (FMI, Banco Mundial etc.), seus adversários extraem de dentro dessa armadura modelos alternativos que circulam através da rede das ONGs. Assim, tanto no centro como na periferia da nova ordem mundial as lutas internas alimentam e se alimentam da dinâmica da importação cultural. Concorrentes tanto quanto complementares nos seus efeitos hegemônicos.


Imposição de prioridades

Graças ao recrutamento nos campi das elites, ao apoio financeiro das fundações filantrópicas e aos numerosos intermediários que dispõem (no campo universitário mas também o das instituições internacionais), as ONGs baseadas em Washington podem elaborar mais facilmente estratégias e modelos que correspondem aos novos desafios políticos ou científicos. Elas estão muito preocupadas em difundir essas análises, pois esperam, em troca, uma mobilização da opinião internacional para aumentar a sua influência em Washington. Para as organizações militantes dos países dominados o problema é diferente. A fraqueza dos próprios recursos as leva a recorrer ao mercado internacional da filantropia... que lhes impõe, em troca, suas palavras de ordem e os seus modelos, senão os seus modos.

Na sua tese sobre “O mercado internacional da solidariedade”, Benjamin Buclet detalha toda a ambigüidade da "parceria" entre as grandes ONGs internacionais e as pequenas estruturas que intervêm no âmbito local. A fim de financiar sua ação militante, estas últimas devem se inscrever numa lógica de projeto, negociado com financiadores de fundos internacionais. A concorrência entre projetos assegura a influência desses gestores financeiros, tanto sobre a definição "das populações-alvo" como sobre os objetivos e os critérios de avaliações. Além disso, as prioridades desses gestores são substituídas pelas das grandes ONGs, bem introduzidas na cena internacional – o que lhes permite preencher, de fato, um papel de holding no que diz respeito às suas redes de pequenas ONGs locais, que não dispõem dos recursos sociais que permitem acesso direto aos financiamentos internacionais. Esse dispositivo cria um curto-circuito entre os governos nacionais e os notáveis locais, mas permite à "sociedade civil internacional" assegurar a divulgação dos seus valores e das suas prioridades, definir quais são as necessidades de desenvolvimento ou as expectativas de democracia.


Emigração de militantes

Denunciando os adeptos do monetarismo que impuseram os seus discípulos – e a sua disciplina – na chefia das instituições financeiras nacionais dos países em desenvolvimento, os agentes do "mercado mundial da solidariedade" prolongam em âmbito local a empresa de reestruturação política nos Estados da periferia. Quando eles se esforçam em construir sua credibilidade sobre o assunto, os responsáveis dessas pequenas ONGs não escapam à lógica do clientelismo. Porta-vozes – mas também "padrinhos" – de populações muito dependentes, eles são levados a concorrer com os notáveis que dispunham até então de um quase monopólio sobre o poder político local.

Às vezes, os lucros obtidos pelos militantes na cena internacional são bem pagos no plano local porque, incentivados a utilizar os métodos de ação estimados pelos países democráticos e as ONGs (reuniões pacíficas, exposição dos líderes mais carismáticos do movimento), eles se defrontam com poderes que não recuam na frente da violência. O que corresponde melhor aos canhões do protesto ocidental, mediatização incluída, não é necessariamente o que impressiona mais nos regimes cuja potência das forças de repressão e o equilíbrio dos poderes não são nem os de Estocolmo nem os de Washington

Confrontados com uma luta tão incerta quanto desigual, alguns desses militantes podem estar tentados a fugir para as grandes cenas da globalização, onde, graças aos recursos postos à sua disposição, têm a impressão que os seus engajamentos são não apenas menos arriscados, mas também mais eficazes. Assim, entre os militantes chilenos que foram os pioneiros dos direitos da pessoa sob a ditadura de Pinochet, vários, entre os melhores, emigraram para se encontrar na primeira fila da cena internacional. Alguns o fizeram porque eram perseguidos ou expulsos, como o professor de direito Jose Zalaquett, que se juntou à Anistia Internacional em 1976, antes de assumir três anos mais tarde sua presidência.
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Mas, para a maior parte, sua partida coincide com o declínio das ONGs chilenas, após a vitória da coalizão democrática. Porque a nova equipe governamental recorre a eles para beneficiar sua legitimidade: Roberto Garreton, responsável pelo comitê jurídico de defesa das vítimas da ditadura, criado no seio do arcebispado, é, por exemplo, nomeado embaixador dos direitos do homem, antes de prosseguir sua carreira na ONU como relator especial dos direitos humanos, especialmente no Zaire. Em termos mais gerais, quando o Chile pára de ser destaque nas grandes mídias, os financiamentos das ONGs se esgotam, ainda que as camadas mais desfavorecidas da população chilena continuam a ser vítimas de violências policiais. Para prosseguir com seu compromisso, certos militantes escolhem então emigrar, como José Vivenco, que foi para Washington, onde fica um dos principais porta-vozes da America's Watch.


Inspiração americana

A internacionalização das lutas nacionais pelas quais se constrói o embrião de uma sociedade civil mundial contribui, por conseguinte, para impor como universais estratégias um savoir faire inspirado pela dinâmica da política americana. A vitória de Ronald Reagan já tinha produzido efeitos paradoxais, principalmente favorecendo a universalização dos "direitos do homem". Para construir uma espécie de reação contra o embargo da direita às instituições de Estado, a fração reformista, freqüentemente democrata, do Foreign Policy Establishment se apoiou nos recursos de instituições privadas que ela tinha fundado e cujo controle conservava. Preocupada em incentivar o desenvolvimento de uma "sociedade civil" capaz de desempenhar um papel de contra-poder, invocava contra os falcões os quais se cercava Ronald Reagan, uma moral universal dos direitos da pessoa.

As fundações filantrópicas desempenharam um papel de reguladores da mobilização cívica. Na área de meio ambiente, por exemplo, fazendo cintilar suas subvenções e mobilizando suas redes científicas, a Fundação Ford acelerou a reconversão de movimentos contestadores ao redor de temáticas "responsáveis". Por exemplo, fez pressão sobre os responsáveis pelo Environment Defense Fund (FED), de modo que abandonassem uma estratégia de confrontação que se apoiava sobre a tribuna judicial para mobilizar a opinião: "Sue the bastards" (Levem os canalhas à justiça), de acordo com a fórmula favorita do inventor desta diligência.


Capitalismo filantrópico

Alegando que a responsabilidade civil como financiadores de fundos estava comprometida, os financeiros da Fundação Ford impuseram uma pré-seleção dos processos por grandes notáveis da advocacia. Simultaneamente, a fundação incentivou a negociação dos ecologistas com os industriais. Primeiro, financiando os trabalhos de uma equipe de economistas da Electricité de France, que demonstraram que a proteção do meio ambiente não representava apenas um custo, mas uma fonte de lucros potenciais para as empresas.

Em seguida, fazendo pressão sobre os múltiplos pequenos grupos de ativistas para que se agrupassem em estruturas unificadas ao redor de estados maiores profissionais, capazes de negociar com base numa avaliação científica reconhecida. As grandes ONGs que doravante passaram a dominar a cena internacional da defesa do meio ambiente – modernizado sob a denominação de "mercado do desenvolvimento sustentável" – são o instrumento desta contra-ofensiva inscrita na grande tradição reformista do capitalismo filantrópico americano, inventado pelos "barões ladrões".

Pierre Bourdieu o recordava: "A referência ao universal é a arma por excelência". O imperialismo sabe avançar sob o estandarte dos direitos do homem e da (boa) governança. Brincando de parceria com as ONGs, as multinacionais não têm mais que se apresentar como as campeãs do "desenvolvimento (de um capitalismo) sustentável".
Le Monde Diplomatique
Edição brasileira ano 6 número 65
Yves Dezalay e Bryant Garth *