Certo
dia, anos atrás, antes de a última guerra civil ter começado de verdade, um
menino sudanês chamado Logocho espiou para dentro da cabana de sua família.
Então seu pai o agarrou, e segurou-o com força no chão de terra.
Menino
estranho, esse Logocho. Sobre ele, os ombros e o peito do pai ondulavam com
cicatrizes tribais. Uma espécie de código Morse com pontos e traços adornava o
rosto e a testa do pai, anunciando aos eventuais ladrões de gado - os dinka, os
nuer - que ele, um murle, defenderá seu rebanho com a lança, os punhos e os
dentes.
Mas o
filho dele, Logocho, não demonstrava muito interesse pelos velhos costumes.
Quando outras crianças, entre as quais o irmão, se submeteram a um dos
primeiros ritos de passagem murle, ele escapuliu e foi se esconder no mato.
Agora o seu corpo, macio como o de um bezerro, tremia e se agitava na poeira.
Sem nenhuma marca que o distinguia como um murle.
O
garoto de 9 anos também não tinha apreço pelo gado. Como o irmão, Logocho se
agachava para sugar as tetas das vacas, mas o fazia apenas pelo leite. Durante
incontáveis gerações, os homens murle - assim como seus rivais em toda a região
meridional do Sudão - haviam vivido ao lado de suas vacas. Davam-lhes nomes,
colocavam-lhes adornos, dormiam ao lado delas. Faziam canções sobre elas. Os
homens usavam o gado como dotes para conseguir noivas.
"O
que você quer da vida, menino?", perguntou o pai de Logocho. "O
quê?"
Enquanto
os homens e os animais migravam de uma cacimba a outra, Logocho preferia ficar
com a avó. A mulher idosa riscava linhas na terra dura e ingrata para cultivar
sorgo, feijão, milho, até abóbora, e em tempos de penúria os homens iam
procurá-la com as mãos estendidas. Logocho a ajudava a semear, cuidar dos
brotos e fazer a colheita. Ela sempre o protegia de seu temido pai. "Você
é especial", dizia a velha.
Naquele
momento, porém, ela não podia salvá-lo. O menino continuava preso de costas no
chão. Então, outro homem ajoelhou-se, debruçou-se sobre o rosto de Logocho e
agarrou uma fina lima de metal. Ele abriu com força o maxilar do menino e
introduziu a lâmina entre os dois dentes inferiores da frente. Empurrou-a até a
gengiva e aí, com uma torção do ombro, girou a lima. Crack! Um dos incisivos se
rompeu, inundando de sangue a boca de Logocho. Em seguida, o especialista
reposicionou a lâmina e - crack! - esfacelou o outro dente incisivo.
Agora
sim Logocho parecia um murle.
Poucos
meses depois, o caos desabaria tanto sobre Logocho como sobre a sua terra
natal. Um bruxo da aldeia disse que algo terrível iria ocorrer com a sua
família. E em toda a região uma fúria acumulada por gerações iria eclodir em
1983, desencadeando um conflito horrendo e invisível para o resto do mundo.
Durante as duas décadas seguintes, mais de 4 milhões de pessoas seriam forçadas
a abandonar suas aldeias e buscar refúgio no mato, nas cidades do norte e nos
países vizinhos. Outros 2 milhões iriam perecer.
A vida
de Logocho - fugindo, se escondendo, combatendo, buscando um sentido - iria
refletir o que se passava em todo o sul do Sudão.
A causa
das tensões no Sudão é de natureza tão geográfica que poderia ser notada até
mesmo por um observador na Lua. A ampla faixa cor de marfim do Saara no norte
da África contrapõe-se à savana e à selva verdejante no minguante centro do
continente. As populações em geral se distribuem de um lado ou de outro desse
divisor vegetal. E dependendo do lado, ao norte ou ao sul, define-se a cultura
- religião, música, indumentária, língua - das pessoas que lá vivem.
No
Sudão, o contato entre árabes e negros sempre foi problemático. Já no século 7,
os conquistadores muçulmanos descobriram que muitos dos moradores da terra
então conhecida como Núbia eram cristãos. O confronto entre ambos consolidou-se
em um impasse que durou mais de um milênio, até que o governador otomano no
Cairo invadiu a região, explorando o território ao sul do Egito como uma fonte
de marfim e escravos. Em 1820, 30 mil pessoas foram transformadas em cativos
pelos otomanos, que as denominavam sudan (negros, em árabe).
A
aversão global à escravidão acabou com o negócio dos traficantes. Os otomanos
se retiraram na década de 1880 e, em 1899, após um breve período de
independência, os britânicos assumiram o país, governando suas duas metades
como regiões distintas. Como não podiam controlar militarmente todo o
território - dez vezes maior que o do Reino Unido -, os ingleses se instalaram
em Cartum e conferiram poderes limitados aos chefes tribais nas províncias. Ao
mesmo tempo, estimularam a adoção do islamismo e da língua árabe no norte, e do
cristianismo e da língua inglesa no sul. Mas concentraram seus esforços no
norte, deixando o sul à própria sorte. A questão que se coloca é: por que essa
insistência em um Sudão unificado?
Um dos
motivos, mais uma vez, é geográfico. Como o Nilo segue para o norte rumo ao
Egito, ele acaba vinculando diferentes culturas em suas margens, de maneira
intermitente e, por vezes, rancorosa. O rio influencia o comércio, o ambiente e
a política, entrelaçando os interesses de ambas as regiões. Enquanto estavam no
país, os britânicos precisavam manter o controle do canal de Suez na foz do
Nilo, pois era a via de acesso dos britânicos à Índia, a "joia da
coroa". E isso implicava manter o controle sobre todo o rio.
Quando
os britânicos se retiraram em meados da década de 1950, não admira que a região
fosse engolfada pela guerra civil. Os rebeldes sulistas combateram as tropas do
governo central durante os anos 1960, e 500 mil pessoas perderam a vida antes
que os dois lados interrompessem as hostilidades em 1972. O cessar-fogo serviu
apenas para que os beligerantes se recompusessem para um conflito ainda mais
sanguinolento.
No
intervalo entre as duas guerras civis, o governo em Cartum associou-se ao Egito
para a realização de um projeto de grande escala no sul. Na imensa planície
onde o Nilo atravessa o Sudão do Sul, ele forma o Sudd, uma das maiores áreas
de terras úmidas em toda a África. E onde as cheias anuais do rio renovavam as
pastagens era o local em que desde sempre as tribos meridionais criavam seu
gado. O projeto dos dois governos era abrir um canal de 360 quilômetros que
desviaria do Sudd as águas do Nilo, a fim de que seguissem para o norte até o
árido Egito. À região, foi assim levado um equipamento de escavação enorme, tão
grande quanto um prédio de oito andares, que começou a rasgar os pastos sob o
olhar impotente das tribos locais.
Com a
eclosão da segunda guerra civil, em 1983, surgiu um grupo rebelde intitulado
Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLA, na sigla em inglês), que, em um
de seus primeiros atos espetaculares, lançou um ataque contra a sede da
construtora do canal Jonglei, interrompendo o projeto. Anos de carnificina se
seguiram e somente seriam encerrados em 2005, quando esforços diplomáticos nos
bastidores levaram à assinatura do chamado Acordo de Paz Global. Esse pacto
assegurou ao sul do Sudão uma autonomia relativa, com Constituição (baseada na
distinção entre religião e Estado), Exército e moeda próprios. Em janeiro deste
ano, a história sudanesa deu um passo determinante: a população sulista aprovou
em referendo a decisão de separar-se do norte e formar uma nação livre, por
hora chamada de Sudão do Sul.
As
lideranças políticas de ambos os lados estão emitindo sinais de que pretendem
respeitar o resultado, temerosos de uma intervenção internacional. Ao mesmo
tempo, continuam o antagonismo e a troca de acusações. Essa duplicidade
torna-se evidente quando meia dúzia de homens vestidos de terno me abordam no
aeroporto de Juba, a capital da região sul. Eles me enfiam em um caminhão com
soldados e me levam a um quartel. Ali se apoderam de meu celular e minha
câmera, e me impedem de tomar água ou ir ao banheiro durante o dia e meio em
que sou interrogado. Também se negam a avisar o consulado americano. Depois
fico sabendo que eram agentes do serviço de inteligência do sul do Sudão.
O
episódio me deixa perplexo, porque esse tipo de comportamento destoa da
cordialidade com que os sudaneses sulistas acolhem os ocidentais. Quando me
libertam, um oficial explica: o serviço de inteligência achou que eu era um
espião. Mais tarde descobri que um motorista que tentara me extorquir acabou me
delatando como um espião, mas o incidente mostra quão arraigada é a
desconfiança entre nortistas e sulistas.
A
questão é: por que o norte não aceita a separação do sul? De novo, o motivo é
geográfico: petróleo. A maior parte das reservas fica no futuro Sudão do Sul,
mas o governo central controla as refinarias, assim como a distribuição das
receitas.
De
certo modo, Logocho decepcionou o pai quando ainda estava no ventre de sua mãe.
Anos atrás, a mãe tivera gêmeos, mas um deles havia morrido antes do nascimento
de Logocho. Portanto, de acordo com as tradições murle, o recém-chegado tomou o
lugar do irmão falecido, ao lado do gêmeo sobrevivente. E este era mais forte e
mais ágil. E amava as vacas. E acompanhava o pai em suas jornadas durante a
estação seca, em vez de ficar na aldeia com as mulheres.
Quando
Logocho estava com 9 anos, o pai o chamou. Ameaçou deserdá-lo de seu direito de
nascença - o rebanho de vacas. Com isso, Logocho não teria um dote. Uma irmã
morreu de malária. Outra, de disenteria. Uma epidemia dizimou o rebanho - a
catástrofe prevista pelo bruxo, lembraram os vizinhos. E aí o pai morreu. Sem
rebanho e sem marido, a mãe de Logocho mergulhou no desespero. Como iria dar de
comer aos filhos? Ela então arranjou para que Logocho fosse morar com um tio,
que vivia a quilômetros de distância e ficou intrigado com aquela criança
estranha que lhe coubera cuidar. O tio se enfurecia, e Logocho morria de medo
dele.
Então
aconteceu algo extraordinário. A segunda guerra civil havia começado, e o SPLA
conseguira interromper as atividades da grande escavadeira do canal. Certo dia,
um combatente do SPLA apareceu na aldeia de Logocho pedindo comida, e o menino
lhe deu carne. Outros soldados já haviam passado por ali, e Logocho notara medo
na voz do tio quando este deu um boi para que eles matassem a fome. O poder que
emanava do soldado - da identidade no uniforme, do propósito explícito em sua
arma - ficou gravado a fogo no espírito de Logocho, que teve uma ideia.
Um dia,
quando o tio levou Logocho, então com 12 anos, para ajudá-lo a cuidar dos
animais, ele e cinco amigos se desgarraram do grupo com a desculpa de que
tinham avistado um búfalo morto e iam esfolá-lo. Fugiram todos pelo mato e
continuaram até se juntarem a um grupo de quatro soldados que estavam caçando.
Duas semanas depois chegaram a um acampamento do SPLA perto de Boma. Um punhado
de rebeldes adultos vivia no acampamento, todos esfomeados e aguardando ordens
superiores. Durante um mês o grupo sobreviveu da caça, até que chegaram as
instruções do comando do SPLA: todos deveriam ir para a Etiópia. A pé.
Nessa
mesma época, em meados de 1986, o americano Roger Winter voou até a Etiópia
para se encontrar com John Garang, o carismático líder do SPLA. Com 40 e poucos
anos, Winter havia passado a vida lidando com gente em condições terríveis.
Dirigia uma organização não governamental que atuava em países em via de
desintegração, como Ruanda, Etiópia e Sudão.
Winter
apreciava Garang, um homem complexo, com um sorriso luminoso e um doutorado
pela Universidade Estadual de Iowa, onde estudara economia. Garang era versado
tanto em Marx como na Bíblia. Suas tropas incluíam crianças, mas havia
elaborado uma concepção de um "Sudão Novo" unificado, com as regiões
norte e sul convivendo em paz. E agora ele queria saber: os Estados Unidos
iriam ajudar o povo sulista do Sudão? Winter se considerava militante dos
direitos humanos com a missão de anunciar ao mundo a catástrofe que se
desenhava. (Mais tarde, ele alertou sobre o genocídio iminente em Ruanda.) O
que viu no Sudão o deixou chocado.
Enquanto
isso, no acampamento da SPLA, Logocho e os outros recrutas formaram uma fila e
partiram rumo à Etiópia. Os meninos dependiam naquele momento dos soldados para
obter alimento e água. Outros se juntaram ao grupo pelo caminho, e logo as
fileiras incluíam mais de uma centena de jovens. No início da marcha, quando a
fome apertou, o grupo matou quatro hipopótamos. Várias refeições da carne deram
um nó no intestino de Logocho. Foi um suplício que se prolongou por horas
intermináveis, torcendo-lhe o ventre e fazendo o seu corpo perder muita água.
Ele se lembrou da irmã que morrera de disenteria. Prostrado no chão, sob o sol
escaldante, ele apenas pensava: vou morrer aqui.
Foi
então que um jovem chamado Jowang, parente dele, o viu e foi buscar água.
Depois de matar a sede, Logocho conseguiu se levantar e voltou a caminhar,
agarrando-se à expectativa do futuro incerto que o esperava na Etiópia.
No fim
de outro dia, um dos soldados avisou a coluna: estavam prestes a cruzar um
grande trecho de floresta aonde não haveria água. Só iriam voltar a beber do
outro lado, e por isso teriam de caminhar à noite, com a temperatura mais
amena. Eles se embrenharam no mato quando começou a escurecer. Quando rompeu o
dia, estavam saindo da floresta, exaustos com a caminhada e a ameaça dos
elefantes. Por fim mataram a sede em um rio refestelado de crocodilos.
"Você
é muito pequeno e precisa ficar mais tempo aqui", disseram os soldados
quando Logocho chegou à Etiópia, exaurido pela marcha de 12 dias. Havia gente
de todo o sul do Sudão nesse acampamento perto de Gambela. Era um campo de
refugiados, mas o SPLA o usava como uma espécie de reserva de recrutas,
separando meninos e homens de acordo com a idade e a força.
Mais
tarde, ao visitar esses campos de refugiados na Etiópia, Roger Winter ficou de
coração partido. Os meninos tinham pernas finas como palitos, alguns com dentes
projetados em rostos chupados, outros com olhos esbugalhados, todos cegos de
fome e doenças. Muitos estavam malnutridos porque o governo central de Cartum
havia aprendido a usar a comida como arma. No princípio, os moradores das
aldeias em toda a região sul se juntavam em áreas abertas quando ouviam os
aviões se aproximando, pois estes sempre arremessavam fardos com alimentos.
Logo em seguida, porém, os aviões do governo passaram a lançar bombas em vez de
comida, com um efeito duplo e devastador: bastavam poucas bombas para dizimar
uma multidão, e as pessoas passaram a temer os alimentos vindos do céu.
Acabavam morrendo de fome em suas choças.
Uma
política igualmente desumana na região de Darfur levaria o Tribunal Penal
Internacional de Haia, a expedir em março de 2009 uma ordem de prisão do
presidente do Sudão, Omar al-Bashir, por crimes contra a humanidade. Em julho
de 2010, outra ordem de prisão foi emitida, após ele ter sido acusado de
genocídio.
A
vontade de Logocho era se juntar às unidades de combate, mas nem sequer conseguia
segurar um fuzil AK-47 por tempo suficiente para mirar um alvo. Assim, durante
seis meses, no campo de treinamento de Bonga, foi desenvolvendo outras
habilidades táticas, desde se arrastar pelo chão sob fogo inimigo até não
revelar nada importante caso fosse interrogado. Quando o próprio John Garang
apareceu por lá, fez um discurso emocionante diante dos recrutas, distribuiu
uniformes e os dividiu em dois grupos. Os rapazes e os adultos estavam prontos
para a luta, ao passo que Logocho e outros meninos menores iriam frequentar a
escola no campo de Dima e ficar de prontidão para uma convocação.
Ao
completar 15 anos, Logocho afinal reuniu condições para usar um fuzil. Ao longo
dos anos seguintes, combateu nas forças rebeldes e não se furtou a disparar sua
arma, mas jamais conseguiu alvejar outro ser humano. Quando os seus
companheiros topavam com árabes feridos após uma escaramuça, não hesitavam nem
se incomodavam em matá-los. Para Logocho, porém, isso era impossível. A guerra
não lhe era familiar.
As tropas
do governo central contavam com equipamentos e armas muito superiores, e usavam
aviões a jato para bombardear os tanques de combustível e os soldados sulistas.
Por isso, o SPLA foi obrigado a adotar táticas de guerrilha no mato. Toda vez
que o destacamento de Logocho avançava por um território novo, cada soldado
cavava uma trincheira rasa individual. Os imensos aviões Antonov, de fabricação
soviética, chegavam com um zumbido característico, e depois vinha o assobio das
bombas que caíam. Em mais de uma vez, Logocho enterrou o rosto no chão, arfando
na terra revolvida, enquanto seus amigos agonizavam ao lado.
Um
desses amigos havia lhe mostrado uma Bíblia. Uma das histórias que leu parecia
apropriada à situação. "Pobre", dizia Isaías da terra hoje conhecida
como Sudão. "Pobre da terra dos grilos alados, que fica além dos rios da
Etiópia".
Roger
Winter tinha consciência de que cruzara um limiar. É verdade, outros militantes
dos direitos humanos haviam ido ainda mais longe - um ex-padre irlandês se
engajara por inteiro na luta, chegando a fornecer armas para os rebeldes -, mas
o fato é que os líderes do Sudão do Sul passaram a contar cada vez mais com a
orientação e a inspiração de Winter. Em 1994, os responsáveis pela ala política
do SPLA, o Movimento pela Libertação do Povo do Sudão (SPLM, na sigla em
inglês), realizaram sua primeira convenção nacional, no meio da selva perto da
fronteira com Uganda. As autoridades em Cartum ficaram sabendo do encontro e
mobilizaram a aviação par Desde muito os líderes sulistas haviam abandonado os
vilarejos e as estradas - alvos fáceis - e se enfurnado na floresta. Homens
como Garang e seu lugar-tenente, Salva Kiir, tinham crescido em acampamentos de
pastores e sentiam-se à vontade em áreas rurais remotas. Vindas de todo o
Sudão, mais de 500 pessoas participavam da convenção, e os soldados do SPLA circulavam
por entre a relva alta em torno do local, apagando os sinais da passagem humana
de modo a impedir sua localização pelos bombardeiros. Os organizadores do
encontro entalharam degraus nas encostas, e ali as pessoas podiam se acomodar
em um anfiteatro camuflado pela natureza e ouvir o que Winter tinha a dizer
sobre a democracia. Depois dessa primeira e acidentada convenção política, o
SPLM formou um governo próprio, tendo à frente Garang.
Em
janeiro de 2010 me encontrei com Salva Kiir, que se tornou presidente da região
sul após a morte de Garang, em 2005, em um acidente de helicóptero. Ele ainda
parecia pouco confortável no gabinete presidencial, rodeado pelo resplendor do
poder usual na África central. Usava um chapéu preto de caubói, que ganhara do presidente
George W. Bush, e se esparramava desajeitado em um sofá pomposo como se este
fosse pequeno demais. Em sentido figurado, também parecia pouco à vontade em
seu cargo político. Jamais imaginara ter de assumir a Presidência, contou, e
seus planos para o Sudão do Sul supunham a transferência do cargo para outra
pessoa. "Uma transmissão pacífica do poder", comentou, "pois
isso é o fundamento de uma boa democracia." Ele se mostrou bem mais
animado quando lhe perguntei de sua infância entre as vacas, dormindo ao lado
delas e mamando em suas tetas. "Isso é que era bom", disse, abrindo
um sorriso. E ainda tem seus rebanhos? "Um homem nunca diz quantos filhos
ou vacas tem", respondeu. "Às vezes ele diz que tem só um. Mas isso
pode significar dez ou 100 ou mil." Bem, então, quantas tem? Ele riu.
"Uma."
Nos
anos seguintes à convenção na selva, Winter não deixou de lado sua preocupação,
empenhando-se em explicar o Sudão aos americanos e os Estados Unidos aos
sudaneses. Na manhã de 11 de setembro de 2001, ele estava participando de uma
reunião em Washington, DC, sobre um possível cessar-fogo nos montes Nuba.
Durante o encontro chegou a notícia do atentado terrorista em Nova York, e
ordens para que os edifícios federais fossem evacuados. "Nem morto saio
daqui", lembra-se Winter de ter pensado. "Estamos tão próximos de uma
solução!" Ele havia planejado seguir dali para a embaixada do Sudão, mas,
como era impossível chegar lá por causa do congestionamento na cidade, acabou
passando o dia em negociações pelo telefone.
Nos
primórdios da guerra civil, os únicos americanos que olhavam de perto os
acontecimentos no Sudão eram missionários cristãos. Para eles, o conflito era
de natureza religiosa - entre agressores islâmicos e vítimas não muçulmanas. O
terror do 11 de Setembro só reforçou tal opinião. Por outro lado, Winter tinha
plena consciência de que a guerra civil sudanesa não era simplesmente um
confronto religioso - em muitas de suas partes, o Sudão do Sul é um mosaico de
tribos animistas que nada conhecem do cristianismo. Ele sabia que a lealdade
étnica contava muito mais que a filiação religiosa. Sabia o que estava em jogo
no plano econômico, o quanto o governo central sufocara o desenvolvimento do
sul.
Nas
regiões em que árabes e negros haviam, ao longo da história, disputado terras
de pastagem, agora eles lutavam pelo petróleo - reservas de até 3 bilhões de
barris em uma zona fronteiriça reivindicada por nortistas e sulistas, há tempos
uma área de confronto entre tribos e clãs. Era um conflito complexo, mas Winter
jamais desconsiderou a força positiva da religião. Afinal, havia constatado
isso em primeira mão já em 2002.
Em um
vilarejo sulista chamado Itti, junto à divisa com a Etiópia, ele conhecera uma
igreja presbiteriana onde todos os domingos mais de 300 pessoas se reuniam sob
um telhado de palha e tocavam tambores de pele de animais. Num domingo, o jovem
pastor, um homem chamado Simon, dirigiu-se aos fiéis e falou sobre a "paz
de Deus, que excede toda a compreensão", citando o apóstolo Paulo. Paz até
mesmo com os árabes. Eis a sabedoria em pessoa, pensou Winter.
Depois
do culto, ele perguntou a um grupo de presbíteros o que poderia fazer para
ajudar a congregação. Os líderes podiam pedir qualquer coisa. Um prédio para os
cultos. Instrumentos musicais. Remédios. Dinheiro. "Nosso pastor é um
homem inteligente", disseram afinal. "Mas nunca teve ocasião de se
formar adequadamente como pastor. Você poderia ajudá-lo?"a bombardear o
local.
Winter
ficou estupefato. Essa gente mal tem o que comer, e escolhe mandar alguém para
a escola? Nos anos seguintes ele pagou do próprio bolso para que Simon pudesse
frequentar a escola de teologia em Kampala, Uganda, confiando na palavra do
jovem de que voltaria para a relativa desolação da minúscula Itti.
Lendo a
Bíblia do amigo em um alojamento do SPLA certa noite de 1991, Logocho teve um
estalo. É isso, pensou. Aí está o meu caminho. Decidiu então se tornar pastor.
Pouco depois, um ministro protestante o batizou e lhe perguntou se gostaria de
adotar um novo nome, uma nova identidade. "Quero sim", disse Logocho.
"Simon."
Então,
de nome novo, devolveu o fuzil, abandonou o SPLA e passou a frequentar uma
escola para refugiados no Quênia, onde aperfeiçoou seus conhecimentos de
inglês. Em seguida, foi para uma escola bíblica e depois aceitou um posto em
uma remota igreja em Itti, que um domingo seria visitada por um americano calvo
chamado Roger, que se sentou no chão de terra da igreja ao lado dos outros
fiéis. E o jovem pastor fez um sermão singelo que tocou o coração de um dos
principais arquitetos daquela que se tornaria a mais nova democracia africana.
Os anos
dedicados por Winter a entendimentos diplomáticos culminaram no acordo de paz
de 2005. A carnificina da história sudanesa torna difícil assegurar que o
tratado será mantido até a criação oficial, no dia 9 de julho, do mais novo
país africano. No entanto, Winter - ao lado de negociadores de Quênia,
Grã-Bretanha e outros países - já conseguiu algo que há pouco tempo parecia
impossível: um projeto de paz.
Recentemente,
passei um tempo com Simon em Itti, onde ele não tem o menor prestígio social,
uma vez que não é dono de rebanho; além disso, parece deslocado com seus óculos
escuros e sapatos ocidentais. Nos três anos anteriores, ele sobrevivera
realizando trabalhos comunitários para a Wildlife Conservation Society - uma
atividade muito diversa, em certo sentido, dos acampamentos pastoris e grupos
de caça de seus pares. Ainda assim os moradores locais o cumprimentam e
prometem revê-lo no domingo pela manhã. "E aí, chefia?", dizem.
"Claro que não sou chefe de nada", comenta, rindo.
Simon
poderia ter ficado em Uganda ou ido para o Quênia. Poderia ter emigrado para os
Estados Unidos, onde estaria vivendo com conforto. Por que não ir para lá? Ele
sorri. "Não", diz.
Quando
criança, Logocho havia deixado para trás as tradições pastoris. Cresceu em meio
ao caos da guerra, e depois, quando se tornou Simon, sua fé comoveu um
influente americano que ofereceu apoio, a ele e a seu país. Sua história
pessoal está entrelaçada à do Sudão do Sul, e tudo o que quer é ajudar seu
povo. "Não", diz Logocho. "Este é meu lugar."