Geografia da Amizade

Geografia da Amizade

Amizade...Amor:
Uma gota suave que tomba
No cálice da vida
Para diminuir seu amargor...
Amizade é um rasto de Deus
Nas praias dos homens;
Um lampejo do eterno
Riscando as trevas do tempo.
Sem o calor humano do amigo
A vida seria um deserto.
Amigo é alguém sempre perto,
Alguém presente,
Mesmo, quando longe, geograficamente.
Amigo é uma Segunda eucaristia,
Um Deus-conosco, bem gente,
Não em fragmentos de pão,
Mas no mistério de dois corações
Permutando sintonia
Num dueto de gratidão.
Na geografia
da amizade,
Do amor,
Até hoje não descobri
Se o amigo é luz, estrela,
Ou perfume de flor.
Sei apenas, com precisão,
Que ele torna mais rica e mais bela
A vida se faz canção!

"Roque Schneider"



Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Especialista em Turismo e Hospitalidade, Geógrafa, soteropolitana, professora.

sábado, 24 de setembro de 2011

Para voltar ao centro do palco no Oriente Médio, a Síria tenta superar um passado obscurantista.



Há um trecho em O Poderoso Chefão no qual o jovem Michael Corleone, que está fora do país, percebe que, com a morte súbita e violenta de seu irmão mais velho, agora ele está destinado - condenado seria melhor - a assumir o império mafioso construído pelo pai, já decrépito. "Avise meu pai para que mande me buscar", diz Michael, resignado ao papel que terá de cumprir, a seu anfitrião. "Diga a meu pai que quero ser seu herdeiro."

Se na vida de Bashar al Assad, o atual presidente da Síria, houve um momento assim, ele ocorreu pouco depois das 7 da manhã de 21 de janeiro de 1994, quando o telefone tocou no apartamento que alugava em Londres. Alto e estudioso, o oftalmologista Bashar, então com 28 anos, realizava sua residência no Western Eye Hospital, na capital britânica. Ao atender a ligação, soube que seu irmão mais velho, Basil, dirigindo em alta velocidade a caminho do aeroporto de Damasco em meio a densa neblina, se chocara com seu Mercedes em uma rotatória. Basil, um personagem carismático que vinha sendo preparado para suceder o pai, morreu na hora. E agora ele, Bashar, era convocado de volta a seu país.

Seis anos depois, em junho de 2000, chegou a hora final do pai, Hafez al Assad, que morreu de insuficiência cardíaca aos 69 anos. Logo após o funeral, Bashar entrou no gabinete paterno pela segunda vez em toda sua vida. Ele se lembra com nitidez da primeira vez que estivera lá, excitado para contar ao pai sobre sua primeira lição de francês. Bashar recorda-se de ter visto um frasco de colônia no armário ao lado da escrivaninha do pai. Ele ficou espantando de ainda ver o frasco ali 27 anos depois, intocado. Esse detalhe, a colônia rançosa, diz muito a respeito do regime fechado da Síria, uma ditadura à moda antiga que Bashar se sentia pouco preparado para liderar.

"Meu pai jamais me falou de política", me revela Bashar. "Mesmo depois que voltei para casa, em 1994, tudo o que aprendi sobre sua maneira de governar foi pela leitura das anotações que ele fazia durante as reuniões ou por conversas com seus colaboradores." Uma dessas lições era a de que o governo de um país como a Síria requer certo acomodamento com a ambiguidade. Entusiásta da fotografia, Bashar usa como comparação uma foto em preto-e-branco. "Nunca há preto absoluto ou branco absoluto, algo completamente ruim ou completamente bom", diz ele. "Só várias tonalidades de cinza."

A Síria é uma terra antiga, moldada ao longo de milênios pelo comércio e pelas migrações humanas. Mas, se toda a nação é como uma foto em preto-e-branco com incontáveis tons cinzentos, então a Síria, apesar de toda sua antiguidade, é na verdade uma imagem que vem sendo lentamente revelada diante de nossos olhos. É o tipo de lugar em que podemos ouvir, em um café de Damasco, um contador de histórias de 75 anos evocar as Cruzadas e o Império Otomano como se fossem lembranças de infância enquanto brande sua espada com tanta dramaticidade que os ouvintes recuam para se proteger. Em seguida, podemos caminhar na vizinhança até a magnífica mesquita omíada, erguida em 715, e nos misturarmos aos meninos que jogam futebol na entrada, sem prestar atenção à multidão de peregrinos iranianos que lá acorrem para as orações de fim da tarde. Também é um lugar no qual é possível jantar com amigos em um café elegante e, depois, enquanto se espera pelo ônibus noturno, ouvir gritos arrepiantes vindos de uma janela no segundo andar da delegacia de polícia de Bab Touma. No ponto do ônibus, os sírios trocam olhares de quem sabe muito bem o que está acontecendo, mas ninguém diz nada.

O regime dos Assad não se mantém no poder há quase 40 anos com medidas tolerantes. Ele conseguiu sobreviver em uma região violenta graças a uma combinação de astúcia política e aproximação interesseira com nações mais poderosas - primeiro a União Soviética e agora o Irã. Em estado de guerra com Israel desde 1948, a Síria fornece material aos grupos fundamentalistas islâmicos Hezbollah e Hamas e está empenhada em retomar as colinas de Golã, capturadas por Israel em 1967. As relações com os Estados Unidos, raramente boas, se tornaram ainda mais difíceis após a invasão do Iraque em 2003, quando George W. Bush, citando a oposição à guerra e o apoio aos rebeldes iraquianos, ameaçou derrubar o regime em Damasco e estigmatizou o jovem presidente como um príncipe das trevas árabe.

Este é um bom momento para avaliar a situação do país, agora que a Síria parece prestes a retomar um papel crucial nas questões regionais. Em um famoso comentário, Henry Kissinger afirmou que ali não é possível travar nenhuma guerra sem o Egito nem obter a paz sem a Síria - e provavelmente ele tinha razão. Para o bem ou para o mal, o caminho para a paz no Oriente Médio passa por Damasco.

No lado de fora do antigo mercado Hamadiya, em Damasco, antes havia uma foto de Hafez al Assad tão alta quanto um prédio de três andares. A cabeça do presidente espiava de cima a congestionada capital de 4 milhões de habitantes. Inspirada nos cultos totalitários do império soviético, essa iconografia do Grande Irmão sempre conferiu à Síria a aparência de uma nação preservada em âmbar, remanescente de uma época na qual os ditadores eram de fato ditadores, como Stalin e Mao. E foi esse país que, ao morrer, Hafez deixou para o filho.
Hoje, no lugar da foto imensa, vê-se um grande outdoor branco com uma imagem do primeiro presidente sírio pós-moderno. Bashar está acenando com um sorriso animado no rosto. "Eu acredito na Síria", diz uma frase. Mas será preciso mais que um sorriso e um slogan para reinventar o país. "O que a Síria precisa agora, me diz Bashar, é de uma mudança de mentalidade."

O vilarejo natal da família Assad, Al Qardahah, está situado em uma encosta, resguardada como são as cidadezinhas montanhosas, mas tão próxima do Mediterrâneo que dá para distinguir os barcos de pesca em Latakia, maior porto da Síria. Uma estrada sobe da costa, levando os peregrinos ao vilarejo, onde as ruas são pavimentadas, as casas, imponentes, e os altos funcionários do regime - homens corpulentos na faixa dos 50 ou 60 anos com jeito de mafiosos em férias - passeiam de pijama pelas calçadas.

Centenas de anos atrás, Al Qardahah era um enclave de xiitas pobres que veneravam Ali, o genro e sucessor de Maomé, com tal fervor que foram declarados heréticos por outros muçulmanos e forçados a viver nas montanhas do noroeste da Síria, onde ficaram conhecidos como alauís. Então, em 1939, um deles - um brilhante menino de 9 anos chamado Hafez - foi enviado para estudar fora. Ele foi para Latakia, onde frequentou escolas mantidas pelos franceses que tomaram a região do Império Otomano após a Primeira Guerra, na partilha da Síria histórica (que incluía os territórios atuais de Israel, Palestina, Jordânia, Líbano, oeste do Iraque e sul da Turquia) feita pela Grã-Bretanha e pela França nos termos do Acordo Sykes-Picot, de 1916.

Quieto e alto para sua idade, Hafez era consumido pela ambição de ser bem-sucedido e chegar ao poder. Após a independência da França em 1946, ele passou a integrar o Partido Baath, um movimento nacionalista árabe de cunho secular que assumiria o controle do país em 1963. Hafez fez carreira militar e acabou nomeado ministro da Defesa. Em 1970, articulou um golpe de Estado com a ajuda de um grupo de oficiais, muitos também alauís. Desde então, os seguidores dessa minúscula seita xiita conseguiram se manter no comando dessa nação complexa com 20 milhões de habitantes, 76% dos quais sunitas.

Hafez al Assad sobreviveu graças a sua rara capacidade de manipular eventos geopolíticos, jogando com tal inteligência as cartas fracas que tinha na mão que Bill Clinton o considerou o líder do Oriente Médio mais astucioso que conhecera. Hafez revelou-se um mestre em manter sob controle as explosivas diferenças religiosas no país, estabelecendo um regime laico. Desestimulou a menção ao termo "alauí" em público e alterou o nome de sua região natal para "montes Ocidentais". E empenhou-se ao máximo em proteger outras minorias religiosas - cristãos, ismaelianos, drusos -, pois dependia delas para contrabalançar a preponderância sunita.

Hafez era inclemente com seus inimigos, sobretudo com a Irmandade Muçulmana Síria, um movimento fundamentalista sunita ansioso para afastar do poder os alauís apóstatas e instalar no país um Estado islâmico. Quando, no fim da década de 1970, a Irmandade promoveu uma série de atentados, Hafez ordenou que aviões da Força Aérea bombardeassem áreas densamente povoadas em Hama, reduto dos militantes. Entre 10 mil e 40 mil pessoas morreram, e milhares foram detidas, torturadas e abandonadas em prisões. O regime logo em seguida lançou sua polícia contra todos os opositores políticos.

Quando Hafez al Assad morreu, em 2000, seu corpo foi levado de volta a Al Qardahah e sepultado ao lado de seu primogênito, Basil, cujas façanhas ousadas o distinguiam do estudioso irmão mais novo. "Bashar é tão amistoso que é fácil subestimá-lo", comenta Ryan Crocker, que era embaixador dos Estados Unidos no período em que Bashar assumiu o governo. "Mas não há como negar: ele é bem parecido com o pai."

Um rapaz vestindo uma jaqueta preta de couro sintético desenha em minha caderneta, lançando um barco a vela em um mar revolto com traços cuidadosos de caneta azul. Estamos em um café com vista para as colinas do norte da Síria, seguindo as sombras de nuvens que se movem sobre uma paisagem de terra vermelha e oliveiras de um verde prateado. Liberdade, comenta o jovem. É disso que precisamos.

"Não falo de liberdade política", diz ele olhando para se assegurar de que não há por perto nenhum mukhabarat, ou policial disfarçado. "E sim da liberdade para fazer coisas", segue o rapaz, "sem ser sufocado por questões burocráticas. Na Síria, para gente como eu, não há nenhum incentivo para se tentar algo novo. Jamais se consegue aprovação do governo. Aqui tudo se resume a quem você é, a qual clã ou vilarejo pertence e ao tanto de vitamina Uau que tem no bolso."
"Vitamina Uau?", pergunto. "Wasta!", replica ele rindo. Dinheiro! Suborno! "Para onde vai o barquinho?", pergunto apontando o desenho. "A lugar nenhum", diz. "Não tenho vitamina Uau!"

Logo depois de voltar de Londres, Bashar concluiu que a Síria sofria de overdose de vitamina Uau. Ao assumir o governo em 2000, ele lançou uma campanha anticorrupção, afastando ministros e altos funcionários. Colocou em liberdade centenas de prisioneiros políticos e amenizou as restrições aos dissidentes - uma assim chamada Primavera de Damasco que logo se espalhou, desde a sala das residências até uma crescente subcultura de cafés com acesso à internet. O próprio Bashar tornou possível esta última tendência, junto de tecnocratas com ideias similares, a fim de difundir o uso de computadores mesmo antes de virar presidente. Vencendo as objeções da poderosa comunidade militar, Bashar conseguiu, em 1998, convencer o pai a conectar o país à rede mundial de computadores.

Ele também tomou medidas para reativar a economia. "Quarenta anos de socialismo - isso é o que temos de superar", comenta Abdallah Dardari, de 46 anos, economista formado em Londres e vice-primeiro-ministro para assuntos econômicos. Bashar recrutou no exterior os melhores e mais brilhantes expatriados. Essa nova equipe privatizou o sistema bancário, formou parques industriais isentos de impostos e criou em Damasco uma bolsa de valores de modo a estimular os investimentos internos e externos.

"Minha missão é melhorar a vida dos sírios", comenta Bashar. Nesse ímpeto modernizador, o maior aliado é sua mulher, Asma al-Akhras. Elegante, formada em administração no Ocidente, ela encarregou-se de vários programas voltados para a melhoria das condições educacionais e econômicas da população. Filha de um proeminente cardiologista sírio, Asma nasceu e foi criada em Londres. Ela e Bashar têm três filhos, com os quais costumam fazer piqueniques nas colinas em torno da capital - em acentuado contraste com Hafez al Assad, que raramente era visto em público. "Só dá para saber do que as pessoas precisam tendo contato com elas, diz Bashar. Nós nos recusamos a viver em uma bolha. Acho que é por isso que o povo confia em nós."

Por 4 mil anos, a cidade de Aleppo, no norte da Síria, é passagem de rotas comerciais do Crescente Fértil, ligando a Mesopotâmia ao Mediterrâneo. Guardada por uma cidadela no topo de um morro, os 365 hectares do centro antigo de Aleppo estão intactos desde a Idade Média. Hoje, quando adentramos seu suq coberto, o maior mercado público do mundo árabe, é como se transpuséssemos um portal de pedra para o século 15 - uma mistura medieval de merceeiros, mercadores de ouro, carroças, artesãos, mendigos, pregoeiros de todo tipo movendo-se em um imenso desfile colorido e barulhento de sinetas de cabra e pés calçados com sandálias. Se as autoridades municipais tivessem conseguido o que queriam, isso seria coisa do passado.

Na década de 1950, os urbanistas de Aleppo projetaram a modernização da cidade, que previa a passagem pelo centro antigo de amplas ruas de estilo ocidental. Em 1977, porém, os moradores, liderados pelo arquiteto Adli Qudsi, que também vivia na área, se organizaram contra e convenceram as autoridades a alterá-lo. Hoje o centro antigo está preservado. Antes uma relíquia em ruínas, a velha Aleppo é citada por Bashar como um exemplo da mentalidade que promove, um modelo de como é possível reaproveitar o passado da Síria para que possa apontar o futuro.

"Levando em conta que há milênios a Síria é uma nação mercantil, o que procuramos fazer é recuperar as raízes empresariais do país", comenta Abdallah Dardari. "Mas não vai ser fácil: um quarto da força de trabalho ainda vive de salários pagos pelo governo. Herdamos uma economia baseada em privilégios e recursos oficiais."

Ao permitir investimentos privados em setores estatais, Bashar espera modernizar suas operações e administrá-las com mais eficiência. Nesse processo, muita gente já ficou desempregada e houve uma escalada dos preços. Todavia, são tantos trabalhadores que dependem dos salários públicos no setor de algodão que ele continua quase todo sob a tutela do Estado.

A Síria herdada por Bashar exibe sinais tão antiquados que seria melhor começar do zero. Criado pelo Partido Baath nos anos 1960, o sistema de estatais e empregos públicos melhorou o padrão de vida e levou educação e assistência médica às áreas rurais, mas lembra o falido socialismo do Leste Europeu. E a burocracia síria é ainda mais antiga, com base na administração do Império Otomano e no domínio francês.
A reforma educacional está nos planos de Bashar, e é urgente. As crianças aprendem memorizando manuais velhos, e são avaliadas, mesmo em nível universitário, pela quantidade de fatos que sabem de cor. "Minha filha de 11 anos está muito confusa", conta Dardari. "Em casa ela ouve falar nos mercados e como funciona o mundo, e aí, quando vai à escola, lê manuais de 1970 que pregam o marxismo e o triunfo proletário."

Quando um filho assume o negócio familiar, às vezes é difícil mudar o modo como as coisas sempre foram feitas. E, mesmo que o filho mais velho, Basil, fosse mais afinado com o pai, Bashar acabou seguindo os passos de Hafez. Quando estava há um ano na Presidência, aviões foram lançados contra o World Trade Center, em Nova York, e, de repente, parecia cada vez maior a ameaça aos regimes laicos, como a Síria, por parte da Al Qaeda e da Irmandade Muçulmana. A invasão americana no Iraque inflamou os fundamentalistas sírios, ao mesmo tempo que o país recebeu 1,4 milhão de refugiados iraquianos. Alguns acreditam que Bashar, em tática similar a de seu pai, desviou a fúria contra seu governo de modo que se voltasse contra os americanos, permitindo que os jihadistas usassem a Síria como área de reagrupamento e passagem.

Mesmo antes do 11 de Setembro, Bashar começou a recuar nas reformas políticas e na liberdade de expressão. Sua iniciativa anticorrupção estagnou, solapada por negócios escusos de membros da própria família. Investigações sobre o assassinato em Beirute do ex-primeiro-ministro libanês Rafiq Hariri, em 2005, apontaram para uma conexão síria. Pouco depois Bashar ordenou a detenção de prisioneiros políticos a quem colocara em liberdade anos antes. E, em 2008, em uma reviravolta irônica para um entusiasta da informática que levou a internet à Síria, Bashar bloqueou o acesso a uma enorme quantidade de sites. Em tudo isso, alguns veem Bashar como vítima de elementos reacionários de seu governo. Outros, no entanto, o consideram mais como um jovem chefão exercitando seus músculos.

O mesmo Bashar responsabiliza a invasão do Iraque por ter empurrado toda a região para uma situação difícil e perigosa, e defende as duras medidas de segurança interna como vitais na luta pela sobrevivência. "Estamos em estado de guerra com Israel", diz. "Temos problemas com a Irmandade Muçulmana desde 1950. Mas agora há um perigo bem maior. A Al Qaeda é um estado de espírito. É muito difícil de ser detectada. Precisamos reforçar a segurança interna."

Os membros da oposição, quase todos na clandestinidade ou na prisão, não se convencem com tal argumentação, brandida há 30 anos para sufocar qualquer discordância. Embora reconheçam que a repressão não é tão violenta quanto a anterior, os ativistas com quem conversei consideram superficiais as diferenças entre o regime de Bashar e o de seu pai. "Bashar parece razoável, mas o governo é mais que uma pessoa", comenta um jovem militante de direitos humanos com quem me encontro em um apartamento abarrotado de livros na periferia da capital. "Viver aqui é viver com medo", prossegue o rapaz de olheiras marcadas fumando um cigarro. "Você tem a impressão de estar sendo observado. Aí olha em torno e não vê ninguém. Então pensa: 'Eu não deveria sentir isso, mas estou. Devo estar enlouquecendo'. E é isso o que eles querem."

Seja qual for o propósito, a sombra do medo, a nuvem que bloqueia o sol, está por toda parte. A fim de proteger as pessoas com quem conversei, muitas não foram identificadas, pois eu temia pela prisão delas uma vez publicado este artigo. Um professor universitário que conheci em Aleppo foi submetido a um interrogatório brutal após ter participado de um colóquio em que estiveram cientistas israelenses. Os interrogadores o deixaram partir com a ameaça de que, se divulgasse o ocorrido, seu caso seria reaberto.

Certa manhã, em Damasco, estou em um parque com um grupo de trabalhadores ocasionais, com idades em torno dos 20 anos, todos à procura de serviço. A maioria é da região de Dara, no sul do país, e debatemos os prós e os contras daquela cidade. Para eles, é um lugar horrível, seco e sujo. Eu a defendo. Enquanto discutimos em tom de brincadeira, um homem de meia-idade se aproxima e nos ouve. Quando notam a presença dele, a conversa acaba.

"Dara é uma grande cidade", diz o recém-chegado. Os outros começam a se afastar. Para ver qual seria a reação dele, conto que tenho uma entrevista com o presidente e pergunto se gostaria que eu lhe transmitisse alguma mensagem. Ele rabisca algo em um bloco, e imagino que seja sobre mim. Mas o homem diz: "Por favor, entregue isto ao presidente". No papel está rabiscado seu nome e telefone e uma mensagem em árabe precário: "Saudações, respeitável Dr. Presidente Bashar. Este bilhete é de um jovem sírio, de Al Hasakah, que precisa muito de um emprego no funcionalismo público. Muito obrigado".

Nenhum comentário:

Postar um comentário