Geografia da Amizade

Geografia da Amizade

Amizade...Amor:
Uma gota suave que tomba
No cálice da vida
Para diminuir seu amargor...
Amizade é um rasto de Deus
Nas praias dos homens;
Um lampejo do eterno
Riscando as trevas do tempo.
Sem o calor humano do amigo
A vida seria um deserto.
Amigo é alguém sempre perto,
Alguém presente,
Mesmo, quando longe, geograficamente.
Amigo é uma Segunda eucaristia,
Um Deus-conosco, bem gente,
Não em fragmentos de pão,
Mas no mistério de dois corações
Permutando sintonia
Num dueto de gratidão.
Na geografia
da amizade,
Do amor,
Até hoje não descobri
Se o amigo é luz, estrela,
Ou perfume de flor.
Sei apenas, com precisão,
Que ele torna mais rica e mais bela
A vida se faz canção!

"Roque Schneider"



Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Especialista em Turismo e Hospitalidade, Geógrafa, soteropolitana, professora.

sábado, 24 de setembro de 2011

Os difíceis anos da guerra civil no Sudão do Sul



Certo dia, anos atrás, antes de a última guerra civil ter começado de verdade, um menino sudanês chamado Logocho espiou para dentro da cabana de sua família. Então seu pai o agarrou, e segurou-o com força no chão de terra.

Menino estranho, esse Logocho. Sobre ele, os ombros e o peito do pai ondulavam com cicatrizes tribais. Uma espécie de código Morse com pontos e traços adornava o rosto e a testa do pai, anunciando aos eventuais ladrões de gado - os dinka, os nuer - que ele, um murle, defenderá seu rebanho com a lança, os punhos e os dentes.

Mas o filho dele, Logocho, não demonstrava muito interesse pelos velhos costumes. Quando outras crianças, entre as quais o irmão, se submeteram a um dos primeiros ritos de passagem murle, ele escapuliu e foi se esconder no mato. Agora o seu corpo, macio como o de um bezerro, tremia e se agitava na poeira. Sem nenhuma marca que o distinguia como um murle.

O garoto de 9 anos também não tinha apreço pelo gado. Como o irmão, Logocho se agachava para sugar as tetas das vacas, mas o fazia apenas pelo leite. Durante incontáveis gerações, os homens murle - assim como seus rivais em toda a região meridional do Sudão - haviam vivido ao lado de suas vacas. Davam-lhes nomes, colocavam-lhes adornos, dormiam ao lado delas. Faziam canções sobre elas. Os homens usavam o gado como dotes para conseguir noivas.

"O que você quer da vida, menino?", perguntou o pai de Logocho. "O quê?"

Enquanto os homens e os animais migravam de uma cacimba a outra, Logocho preferia ficar com a avó. A mulher idosa riscava linhas na terra dura e ingrata para cultivar sorgo, feijão, milho, até abóbora, e em tempos de penúria os homens iam procurá-la com as mãos estendidas. Logocho a ajudava a semear, cuidar dos brotos e fazer a colheita. Ela sempre o protegia de seu temido pai. "Você é especial", dizia a velha.

Naquele momento, porém, ela não podia salvá-lo. O menino continuava preso de costas no chão. Então, outro homem ajoelhou-se, debruçou-se sobre o rosto de Logocho e agarrou uma fina lima de metal. Ele abriu com força o maxilar do menino e introduziu a lâmina entre os dois dentes inferiores da frente. Empurrou-a até a gengiva e aí, com uma torção do ombro, girou a lima. Crack! Um dos incisivos se rompeu, inundando de sangue a boca de Logocho. Em seguida, o especialista reposicionou a lâmina e - crack! - esfacelou o outro dente incisivo.

Agora sim Logocho parecia um murle.

Poucos meses depois, o caos desabaria tanto sobre Logocho como sobre a sua terra natal. Um bruxo da aldeia disse que algo terrível iria ocorrer com a sua família. E em toda a região uma fúria acumulada por gerações iria eclodir em 1983, desencadeando um conflito horrendo e invisível para o resto do mundo. Durante as duas décadas seguintes, mais de 4 milhões de pessoas seriam forçadas a abandonar suas aldeias e buscar refúgio no mato, nas cidades do norte e nos países vizinhos. Outros 2 milhões iriam perecer.
A vida de Logocho - fugindo, se escondendo, combatendo, buscando um sentido - iria refletir o que se passava em todo o sul do Sudão.

A causa das tensões no Sudão é de natureza tão geográfica que poderia ser notada até mesmo por um observador na Lua. A ampla faixa cor de marfim do Saara no norte da África contrapõe-se à savana e à selva verdejante no minguante centro do continente. As populações em geral se distribuem de um lado ou de outro desse divisor vegetal. E dependendo do lado, ao norte ou ao sul, define-se a cultura - religião, música, indumentária, língua - das pessoas que lá vivem.

No Sudão, o contato entre árabes e negros sempre foi problemático. Já no século 7, os conquistadores muçulmanos descobriram que muitos dos moradores da terra então conhecida como Núbia eram cristãos. O confronto entre ambos consolidou-se em um impasse que durou mais de um milênio, até que o governador otomano no Cairo invadiu a região, explorando o território ao sul do Egito como uma fonte de marfim e escravos. Em 1820, 30 mil pessoas foram transformadas em cativos pelos otomanos, que as denominavam sudan (negros, em árabe).

A aversão global à escravidão acabou com o negócio dos traficantes. Os otomanos se retiraram na década de 1880 e, em 1899, após um breve período de independência, os britânicos assumiram o país, governando suas duas metades como regiões distintas. Como não podiam controlar militarmente todo o território - dez vezes maior que o do Reino Unido -, os ingleses se instalaram em Cartum e conferiram poderes limitados aos chefes tribais nas províncias. Ao mesmo tempo, estimularam a adoção do islamismo e da língua árabe no norte, e do cristianismo e da língua inglesa no sul. Mas concentraram seus esforços no norte, deixando o sul à própria sorte. A questão que se coloca é: por que essa insistência em um Sudão unificado?

Um dos motivos, mais uma vez, é geográfico. Como o Nilo segue para o norte rumo ao Egito, ele acaba vinculando diferentes culturas em suas margens, de maneira intermitente e, por vezes, rancorosa. O rio influencia o comércio, o ambiente e a política, entrelaçando os interesses de ambas as regiões. Enquanto estavam no país, os britânicos precisavam manter o controle do canal de Suez na foz do Nilo, pois era a via de acesso dos britânicos à Índia, a "joia da coroa". E isso implicava manter o controle sobre todo o rio.

Quando os britânicos se retiraram em meados da década de 1950, não admira que a região fosse engolfada pela guerra civil. Os rebeldes sulistas combateram as tropas do governo central durante os anos 1960, e 500 mil pessoas perderam a vida antes que os dois lados interrompessem as hostilidades em 1972. O cessar-fogo serviu apenas para que os beligerantes se recompusessem para um conflito ainda mais sanguinolento.

No intervalo entre as duas guerras civis, o governo em Cartum associou-se ao Egito para a realização de um projeto de grande escala no sul. Na imensa planície onde o Nilo atravessa o Sudão do Sul, ele forma o Sudd, uma das maiores áreas de terras úmidas em toda a África. E onde as cheias anuais do rio renovavam as pastagens era o local em que desde sempre as tribos meridionais criavam seu gado. O projeto dos dois governos era abrir um canal de 360 quilômetros que desviaria do Sudd as águas do Nilo, a fim de que seguissem para o norte até o árido Egito. À região, foi assim levado um equipamento de escavação enorme, tão grande quanto um prédio de oito andares, que começou a rasgar os pastos sob o olhar impotente das tribos locais.
Com a eclosão da segunda guerra civil, em 1983, surgiu um grupo rebelde intitulado Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLA, na sigla em inglês), que, em um de seus primeiros atos espetaculares, lançou um ataque contra a sede da construtora do canal Jonglei, interrompendo o projeto. Anos de carnificina se seguiram e somente seriam encerrados em 2005, quando esforços diplomáticos nos bastidores levaram à assinatura do chamado Acordo de Paz Global. Esse pacto assegurou ao sul do Sudão uma autonomia relativa, com Constituição (baseada na distinção entre religião e Estado), Exército e moeda próprios. Em janeiro deste ano, a história sudanesa deu um passo determinante: a população sulista aprovou em referendo a decisão de separar-se do norte e formar uma nação livre, por hora chamada de Sudão do Sul.

As lideranças políticas de ambos os lados estão emitindo sinais de que pretendem respeitar o resultado, temerosos de uma intervenção internacional. Ao mesmo tempo, continuam o antagonismo e a troca de acusações. Essa duplicidade torna-se evidente quando meia dúzia de homens vestidos de terno me abordam no aeroporto de Juba, a capital da região sul. Eles me enfiam em um caminhão com soldados e me levam a um quartel. Ali se apoderam de meu celular e minha câmera, e me impedem de tomar água ou ir ao banheiro durante o dia e meio em que sou interrogado. Também se negam a avisar o consulado americano. Depois fico sabendo que eram agentes do serviço de inteligência do sul do Sudão.

O episódio me deixa perplexo, porque esse tipo de comportamento destoa da cordialidade com que os sudaneses sulistas acolhem os ocidentais. Quando me libertam, um oficial explica: o serviço de inteligência achou que eu era um espião. Mais tarde descobri que um motorista que tentara me extorquir acabou me delatando como um espião, mas o incidente mostra quão arraigada é a desconfiança entre nortistas e sulistas.

A questão é: por que o norte não aceita a separação do sul? De novo, o motivo é geográfico: petróleo. A maior parte das reservas fica no futuro Sudão do Sul, mas o governo central controla as refinarias, assim como a distribuição das receitas.

De certo modo, Logocho decepcionou o pai quando ainda estava no ventre de sua mãe. Anos atrás, a mãe tivera gêmeos, mas um deles havia morrido antes do nascimento de Logocho. Portanto, de acordo com as tradições murle, o recém-chegado tomou o lugar do irmão falecido, ao lado do gêmeo sobrevivente. E este era mais forte e mais ágil. E amava as vacas. E acompanhava o pai em suas jornadas durante a estação seca, em vez de ficar na aldeia com as mulheres.

Quando Logocho estava com 9 anos, o pai o chamou. Ameaçou deserdá-lo de seu direito de nascença - o rebanho de vacas. Com isso, Logocho não teria um dote. Uma irmã morreu de malária. Outra, de disenteria. Uma epidemia dizimou o rebanho - a catástrofe prevista pelo bruxo, lembraram os vizinhos. E aí o pai morreu. Sem rebanho e sem marido, a mãe de Logocho mergulhou no desespero. Como iria dar de comer aos filhos? Ela então arranjou para que Logocho fosse morar com um tio, que vivia a quilômetros de distância e ficou intrigado com aquela criança estranha que lhe coubera cuidar. O tio se enfurecia, e Logocho morria de medo dele.

Então aconteceu algo extraordinário. A segunda guerra civil havia começado, e o SPLA conseguira interromper as atividades da grande escavadeira do canal. Certo dia, um combatente do SPLA apareceu na aldeia de Logocho pedindo comida, e o menino lhe deu carne. Outros soldados já haviam passado por ali, e Logocho notara medo na voz do tio quando este deu um boi para que eles matassem a fome. O poder que emanava do soldado - da identidade no uniforme, do propósito explícito em sua arma - ficou gravado a fogo no espírito de Logocho, que teve uma ideia.
Um dia, quando o tio levou Logocho, então com 12 anos, para ajudá-lo a cuidar dos animais, ele e cinco amigos se desgarraram do grupo com a desculpa de que tinham avistado um búfalo morto e iam esfolá-lo. Fugiram todos pelo mato e continuaram até se juntarem a um grupo de quatro soldados que estavam caçando. Duas semanas depois chegaram a um acampamento do SPLA perto de Boma. Um punhado de rebeldes adultos vivia no acampamento, todos esfomeados e aguardando ordens superiores. Durante um mês o grupo sobreviveu da caça, até que chegaram as instruções do comando do SPLA: todos deveriam ir para a Etiópia. A pé.

Nessa mesma época, em meados de 1986, o americano Roger Winter voou até a Etiópia para se encontrar com John Garang, o carismático líder do SPLA. Com 40 e poucos anos, Winter havia passado a vida lidando com gente em condições terríveis. Dirigia uma organização não governamental que atuava em países em via de desintegração, como Ruanda, Etiópia e Sudão.

Winter apreciava Garang, um homem complexo, com um sorriso luminoso e um doutorado pela Universidade Estadual de Iowa, onde estudara economia. Garang era versado tanto em Marx como na Bíblia. Suas tropas incluíam crianças, mas havia elaborado uma concepção de um "Sudão Novo" unificado, com as regiões norte e sul convivendo em paz. E agora ele queria saber: os Estados Unidos iriam ajudar o povo sulista do Sudão? Winter se considerava militante dos direitos humanos com a missão de anunciar ao mundo a catástrofe que se desenhava. (Mais tarde, ele alertou sobre o genocídio iminente em Ruanda.) O que viu no Sudão o deixou chocado.

Enquanto isso, no acampamento da SPLA, Logocho e os outros recrutas formaram uma fila e partiram rumo à Etiópia. Os meninos dependiam naquele momento dos soldados para obter alimento e água. Outros se juntaram ao grupo pelo caminho, e logo as fileiras incluíam mais de uma centena de jovens. No início da marcha, quando a fome apertou, o grupo matou quatro hipopótamos. Várias refeições da carne deram um nó no intestino de Logocho. Foi um suplício que se prolongou por horas intermináveis, torcendo-lhe o ventre e fazendo o seu corpo perder muita água. Ele se lembrou da irmã que morrera de disenteria. Prostrado no chão, sob o sol escaldante, ele apenas pensava: vou morrer aqui.

Foi então que um jovem chamado Jowang, parente dele, o viu e foi buscar água. Depois de matar a sede, Logocho conseguiu se levantar e voltou a caminhar, agarrando-se à expectativa do futuro incerto que o esperava na Etiópia.

No fim de outro dia, um dos soldados avisou a coluna: estavam prestes a cruzar um grande trecho de floresta aonde não haveria água. Só iriam voltar a beber do outro lado, e por isso teriam de caminhar à noite, com a temperatura mais amena. Eles se embrenharam no mato quando começou a escurecer. Quando rompeu o dia, estavam saindo da floresta, exaustos com a caminhada e a ameaça dos elefantes. Por fim mataram a sede em um rio refestelado de crocodilos.

"Você é muito pequeno e precisa ficar mais tempo aqui", disseram os soldados quando Logocho chegou à Etiópia, exaurido pela marcha de 12 dias. Havia gente de todo o sul do Sudão nesse acampamento perto de Gambela. Era um campo de refugiados, mas o SPLA o usava como uma espécie de reserva de recrutas, separando meninos e homens de acordo com a idade e a força.
Mais tarde, ao visitar esses campos de refugiados na Etiópia, Roger Winter ficou de coração partido. Os meninos tinham pernas finas como palitos, alguns com dentes projetados em rostos chupados, outros com olhos esbugalhados, todos cegos de fome e doenças. Muitos estavam malnutridos porque o governo central de Cartum havia aprendido a usar a comida como arma. No princípio, os moradores das aldeias em toda a região sul se juntavam em áreas abertas quando ouviam os aviões se aproximando, pois estes sempre arremessavam fardos com alimentos. Logo em seguida, porém, os aviões do governo passaram a lançar bombas em vez de comida, com um efeito duplo e devastador: bastavam poucas bombas para dizimar uma multidão, e as pessoas passaram a temer os alimentos vindos do céu. Acabavam morrendo de fome em suas choças.

Uma política igualmente desumana na região de Darfur levaria o Tribunal Penal Internacional de Haia, a expedir em março de 2009 uma ordem de prisão do presidente do Sudão, Omar al-Bashir, por crimes contra a humanidade. Em julho de 2010, outra ordem de prisão foi emitida, após ele ter sido acusado de genocídio.

A vontade de Logocho era se juntar às unidades de combate, mas nem sequer conseguia segurar um fuzil AK-47 por tempo suficiente para mirar um alvo. Assim, durante seis meses, no campo de treinamento de Bonga, foi desenvolvendo outras habilidades táticas, desde se arrastar pelo chão sob fogo inimigo até não revelar nada importante caso fosse interrogado. Quando o próprio John Garang apareceu por lá, fez um discurso emocionante diante dos recrutas, distribuiu uniformes e os dividiu em dois grupos. Os rapazes e os adultos estavam prontos para a luta, ao passo que Logocho e outros meninos menores iriam frequentar a escola no campo de Dima e ficar de prontidão para uma convocação.

Ao completar 15 anos, Logocho afinal reuniu condições para usar um fuzil. Ao longo dos anos seguintes, combateu nas forças rebeldes e não se furtou a disparar sua arma, mas jamais conseguiu alvejar outro ser humano. Quando os seus companheiros topavam com árabes feridos após uma escaramuça, não hesitavam nem se incomodavam em matá-los. Para Logocho, porém, isso era impossível. A guerra não lhe era familiar.

As tropas do governo central contavam com equipamentos e armas muito superiores, e usavam aviões a jato para bombardear os tanques de combustível e os soldados sulistas. Por isso, o SPLA foi obrigado a adotar táticas de guerrilha no mato. Toda vez que o destacamento de Logocho avançava por um território novo, cada soldado cavava uma trincheira rasa individual. Os imensos aviões Antonov, de fabricação soviética, chegavam com um zumbido característico, e depois vinha o assobio das bombas que caíam. Em mais de uma vez, Logocho enterrou o rosto no chão, arfando na terra revolvida, enquanto seus amigos agonizavam ao lado.

Um desses amigos havia lhe mostrado uma Bíblia. Uma das histórias que leu parecia apropriada à situação. "Pobre", dizia Isaías da terra hoje conhecida como Sudão. "Pobre da terra dos grilos alados, que fica além dos rios da Etiópia".

Roger Winter tinha consciência de que cruzara um limiar. É verdade, outros militantes dos direitos humanos haviam ido ainda mais longe - um ex-padre irlandês se engajara por inteiro na luta, chegando a fornecer armas para os rebeldes -, mas o fato é que os líderes do Sudão do Sul passaram a contar cada vez mais com a orientação e a inspiração de Winter. Em 1994, os responsáveis pela ala política do SPLA, o Movimento pela Libertação do Povo do Sudão (SPLM, na sigla em inglês), realizaram sua primeira convenção nacional, no meio da selva perto da fronteira com Uganda. As autoridades em Cartum ficaram sabendo do encontro e mobilizaram a aviação par Desde muito os líderes sulistas haviam abandonado os vilarejos e as estradas - alvos fáceis - e se enfurnado na floresta. Homens como Garang e seu lugar-tenente, Salva Kiir, tinham crescido em acampamentos de pastores e sentiam-se à vontade em áreas rurais remotas. Vindas de todo o Sudão, mais de 500 pessoas participavam da convenção, e os soldados do SPLA circulavam por entre a relva alta em torno do local, apagando os sinais da passagem humana de modo a impedir sua localização pelos bombardeiros. Os organizadores do encontro entalharam degraus nas encostas, e ali as pessoas podiam se acomodar em um anfiteatro camuflado pela natureza e ouvir o que Winter tinha a dizer sobre a democracia. Depois dessa primeira e acidentada convenção política, o SPLM formou um governo próprio, tendo à frente Garang.

Em janeiro de 2010 me encontrei com Salva Kiir, que se tornou presidente da região sul após a morte de Garang, em 2005, em um acidente de helicóptero. Ele ainda parecia pouco confortável no gabinete presidencial, rodeado pelo resplendor do poder usual na África central. Usava um chapéu preto de caubói, que ganhara do presidente George W. Bush, e se esparramava desajeitado em um sofá pomposo como se este fosse pequeno demais. Em sentido figurado, também parecia pouco à vontade em seu cargo político. Jamais imaginara ter de assumir a Presidência, contou, e seus planos para o Sudão do Sul supunham a transferência do cargo para outra pessoa. "Uma transmissão pacífica do poder", comentou, "pois isso é o fundamento de uma boa democracia." Ele se mostrou bem mais animado quando lhe perguntei de sua infância entre as vacas, dormindo ao lado delas e mamando em suas tetas. "Isso é que era bom", disse, abrindo um sorriso. E ainda tem seus rebanhos? "Um homem nunca diz quantos filhos ou vacas tem", respondeu. "Às vezes ele diz que tem só um. Mas isso pode significar dez ou 100 ou mil." Bem, então, quantas tem? Ele riu. "Uma."

Nos anos seguintes à convenção na selva, Winter não deixou de lado sua preocupação, empenhando-se em explicar o Sudão aos americanos e os Estados Unidos aos sudaneses. Na manhã de 11 de setembro de 2001, ele estava participando de uma reunião em Washington, DC, sobre um possível cessar-fogo nos montes Nuba. Durante o encontro chegou a notícia do atentado terrorista em Nova York, e ordens para que os edifícios federais fossem evacuados. "Nem morto saio daqui", lembra-se Winter de ter pensado. "Estamos tão próximos de uma solução!" Ele havia planejado seguir dali para a embaixada do Sudão, mas, como era impossível chegar lá por causa do congestionamento na cidade, acabou passando o dia em negociações pelo telefone.

Nos primórdios da guerra civil, os únicos americanos que olhavam de perto os acontecimentos no Sudão eram missionários cristãos. Para eles, o conflito era de natureza religiosa - entre agressores islâmicos e vítimas não muçulmanas. O terror do 11 de Setembro só reforçou tal opinião. Por outro lado, Winter tinha plena consciência de que a guerra civil sudanesa não era simplesmente um confronto religioso - em muitas de suas partes, o Sudão do Sul é um mosaico de tribos animistas que nada conhecem do cristianismo. Ele sabia que a lealdade étnica contava muito mais que a filiação religiosa. Sabia o que estava em jogo no plano econômico, o quanto o governo central sufocara o desenvolvimento do sul.

Nas regiões em que árabes e negros haviam, ao longo da história, disputado terras de pastagem, agora eles lutavam pelo petróleo - reservas de até 3 bilhões de barris em uma zona fronteiriça reivindicada por nortistas e sulistas, há tempos uma área de confronto entre tribos e clãs. Era um conflito complexo, mas Winter jamais desconsiderou a força positiva da religião. Afinal, havia constatado isso em primeira mão já em 2002.

Em um vilarejo sulista chamado Itti, junto à divisa com a Etiópia, ele conhecera uma igreja presbiteriana onde todos os domingos mais de 300 pessoas se reuniam sob um telhado de palha e tocavam tambores de pele de animais. Num domingo, o jovem pastor, um homem chamado Simon, dirigiu-se aos fiéis e falou sobre a "paz de Deus, que excede toda a compreensão", citando o apóstolo Paulo. Paz até mesmo com os árabes. Eis a sabedoria em pessoa, pensou Winter.

Depois do culto, ele perguntou a um grupo de presbíteros o que poderia fazer para ajudar a congregação. Os líderes podiam pedir qualquer coisa. Um prédio para os cultos. Instrumentos musicais. Remédios. Dinheiro. "Nosso pastor é um homem inteligente", disseram afinal. "Mas nunca teve ocasião de se formar adequadamente como pastor. Você poderia ajudá-lo?"a bombardear o local.
Winter ficou estupefato. Essa gente mal tem o que comer, e escolhe mandar alguém para a escola? Nos anos seguintes ele pagou do próprio bolso para que Simon pudesse frequentar a escola de teologia em Kampala, Uganda, confiando na palavra do jovem de que voltaria para a relativa desolação da minúscula Itti.

Lendo a Bíblia do amigo em um alojamento do SPLA certa noite de 1991, Logocho teve um estalo. É isso, pensou. Aí está o meu caminho. Decidiu então se tornar pastor. Pouco depois, um ministro protestante o batizou e lhe perguntou se gostaria de adotar um novo nome, uma nova identidade. "Quero sim", disse Logocho. "Simon."

Então, de nome novo, devolveu o fuzil, abandonou o SPLA e passou a frequentar uma escola para refugiados no Quênia, onde aperfeiçoou seus conhecimentos de inglês. Em seguida, foi para uma escola bíblica e depois aceitou um posto em uma remota igreja em Itti, que um domingo seria visitada por um americano calvo chamado Roger, que se sentou no chão de terra da igreja ao lado dos outros fiéis. E o jovem pastor fez um sermão singelo que tocou o coração de um dos principais arquitetos daquela que se tornaria a mais nova democracia africana.

Os anos dedicados por Winter a entendimentos diplomáticos culminaram no acordo de paz de 2005. A carnificina da história sudanesa torna difícil assegurar que o tratado será mantido até a criação oficial, no dia 9 de julho, do mais novo país africano. No entanto, Winter - ao lado de negociadores de Quênia, Grã-Bretanha e outros países - já conseguiu algo que há pouco tempo parecia impossível: um projeto de paz.

Recentemente, passei um tempo com Simon em Itti, onde ele não tem o menor prestígio social, uma vez que não é dono de rebanho; além disso, parece deslocado com seus óculos escuros e sapatos ocidentais. Nos três anos anteriores, ele sobrevivera realizando trabalhos comunitários para a Wildlife Conservation Society - uma atividade muito diversa, em certo sentido, dos acampamentos pastoris e grupos de caça de seus pares. Ainda assim os moradores locais o cumprimentam e prometem revê-lo no domingo pela manhã. "E aí, chefia?", dizem. "Claro que não sou chefe de nada", comenta, rindo.

Simon poderia ter ficado em Uganda ou ido para o Quênia. Poderia ter emigrado para os Estados Unidos, onde estaria vivendo com conforto. Por que não ir para lá? Ele sorri. "Não", diz.

Quando criança, Logocho havia deixado para trás as tradições pastoris. Cresceu em meio ao caos da guerra, e depois, quando se tornou Simon, sua fé comoveu um influente americano que ofereceu apoio, a ele e a seu país. Sua história pessoal está entrelaçada à do Sudão do Sul, e tudo o que quer é ajudar seu povo. "Não", diz Logocho. "Este é meu lugar."

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