A mesma
formação e, às vezes, as mesmas idéias: assim funciona o grande mercado de
organizações não-governamentais inspiradas por modelos norte-americanos
A sociologia
tem muito a dizer nos debates sobre a globalização. Porque, se as análises
eruditas são prolixas em diagnósticos promocionais ou críticos, elas se mantêm
muito discretas sobre as práticas de especialistas e contra-especialistas que
são atores essenciais desse processo.
O estudo da
governança mundial representa um mercado valorizado e vantajoso para os
produtores do Direito, da Economia ou de Ciência Política. Para além das suas
divergências científicas ou ideológicas, esses produtores têm em comum o fato
de encarar seriamente os desafios da globalização. Fazendo como se ela fosse
uma realidade – a promover, a combater ou a controlar –, mobilizam recursos
sociais e institucionais que contribuem para fazê-la existir, como aposta
política, mas igualmente como canteiro em torno do qual se empenham os
especialistas. Enquanto jogam a bola de um fórum a outro, os protagonistas têm
todo interesse em não minar esse novo espaço de poder.
Mercado
elitista e protegido
O mercado
da avaliação internacional é elitista e protegido. Para acessá-lo, é necessário
dispor de competências culturais e lingüísticas. Antes de serem reforçadas e
legitimadas por cursos escolares internacionais muito dispendiosos, as
tendências ao internacional são privilégio dos herdeiros de linhagens
familiares cosmopolitas. Incluindo no meio certas críticas da globalização, que
se inscrevem em redes internacionais muitas vezes marcadas pela influência
norte-americana. Porque as grandes organizações não-governamentais (ONGs)
multinacionais recrutam jovens profissionais entre os melhores diplomados dos
campi do Ivy League, nos Estados Unidos. Ora, o acesso a essas escolas de elite
– cujo custo pode exceder 40 mil dólares por ano (98.480 reais) – é reservado
essencialmente aos herdeiros de um establishment liberal, que – “noblesse
oblige” – sempre cultivou certa forma de idealismo e universalismo.
Graças a
tal recrutamento, certas organizações militantes, certas ONGs, dispõem de um
viveiro constantemente renovado de competências. Tão motivadas quanto
reconhecidas, elas se tornam parcerias críticas das multinacionais e das
nações. Essas colaborações, mal remuneradas, mas ricas de experiência, não
excluem de modo algum carreiras posteriores nas instituições de Estado, os
grandes gabinetes de análises, até mesmo as multinacionais. Os profissionais do
militantismo reencontrarão ali seus antigos condiscípulos, e poderão mesmo
superá-los. As aprendizagens militantes desse tipo permitem, com efeito,
adquirir algumas das chaves essenciais para a hora da "globalização":
uma caderneta de endereços, mas também uma habilidade política que combina a visibilidade
mediática e a discrição do lobby, sem esquecer uma reputação bem útil no caso
de reconversão posterior como "empresário moral".
Assim,
Benjamin Heineman, formado em Harvard, Oxford e Yale, começa o seu percurso
profissional dedicando seus três primeiros anos a um gabinete jurídico de
interesse público financiado pela fundação Ford. Isso o conduz a importantes
funções na administração Carter, antes de se tornar (onde ficou por dezessete
anos) diretor jurídico da General Electric, principal multinacional do planeta.
Atualmente é vice-presidente. Exemplar, este perfil atribui a ele uma forte
legitimidade no mundo profissional e patronal, ao qual ele se engaja em prol da
deontologia e maior responsabilidade social.
Herança
colonial
As
características da nova geração dos ativistas da globalização valem,
principalmente, para seus predecessores. A facilidade cultural e lingüística,
freqüentemente cultivada desde mais a jovem idade em estabelecimentos escolares
elitistas, como as escolas bilíngües (particularmente nos países em
desenvolvimento), serve de passaporte para o acesso à formação universitária
estrangeira, cujo custo, assumido em grande parte pelas famílias, reforça o
efeito de seleção social.
Essa
formação no estrangeiro das elites nacionais dos países dependentes constitui
uma herança do modelo colonial trazido pelo novo imperialismo. Os Estados
Unidos impuseram sua hegemonia por meio de investimentos educativos, que
remodelaram os cursos universitários dos futuros responsáveis governamentais
sobre economia e ciência política. Os grandes campi privados do Ivy League
servem assim de lugar preferencial à constituição das novas elites, tanto
nacionais como internacionais. Compensando a maior concorrência no ensino
superior nacional, ligada ao afluxo de estudantes, as formações remotas e
dispendiosas permitiram as diferentes burguesias de Estado privilegiar os seus
herdeiros, reservando-lhes, de fato, o acesso aos diplomas estrangeiros
prestigiosos. Essa estratégia, comum às elites de numerosos países, contribuiu
para "a unificação do campo mundial da formação dos líderes".
Por meio da
denúncia das velhas ideologias coloniais em benefício de novos universais – o
desenvolvimento, o mercado, o Estado de Direito –, a potência hegemônica
americana deu um golpe duplo. Desqualificou as redes de influência que
asseguravam a perenidade do modelo neocolonial europeu, reorientando ao mesmo
tempo para os seus próprios campi os circuitos internacionais de formação das
elites periféricas. Por conseqüência, a fuga dos cérebros para os mercados
profissionais mais remuneradores.
Jogo duplo
Os dois
espaços do nacional e do internacional são perfeitamente encaixados nas
estratégias de reprodução das elites. No mercado da avaliação internacional, os
operadores dominantes são os que podem mobilizar títulos e diplomas
autenticados por seus Estados de origem. No inverso, um capital internacional
de competências e de relações representa uma vantagem não negligenciável nas
estratégias nacionais de poder. Ser um antigo aluno da ENA [Escola Nacional de
Administração] ou politécnico não prejudica certamente uma carreira posterior
nas instituições internacionais; ser diplomado em Harvard não impede de forma
alguma de se tornar ministro em Paris. Um pequeno grupo de privilegiados pode simultaneamente
fazer valer a sua notoriedade nacional para ser ouvido na cena internacional e
investir no internacional para reforçar as suas posições no campo do poder
nacional. Neste último caso, basta explicar que eles poderão, assim, melhor
promover os interesses do país na concorrência mundial.
Tais
estratégias de jogo duplo valem, principalmente, para as grandes instituições
filantrópicas privadas – como as fundações Ford, Rockefeller, Soros – que se
encontram doravante na vanguarda da globalização "humanizada". Ao
mesmo tempo que financiavam o desenvolvimento internacional das grandes ONGs
que militam para os direitos da pessoa ou para a defesa do meio ambiente,
contribuíam para a propagação internacional dos campi que produzem e que
difundem a nova ortodoxia liberal: mais da metade dos presidentes de bancos
centrais são diplomados em economia geralmente nas grandes universidades
americanas; mais de um terço são antigos membros do Fundo Monetário
Internacional (FMI) ou do Banco Mundial. A globalização valoriza, assim, um
espaço da "governança" internacional cujas instituições e práticas se
inspiram no modelo norte-americano.
Paradoxalmente,
as divisões no império fazem a sua diferença. A astúcia da razão imperial é que
ela exporta suas lutas internas: mesmo a contestação do modelo americano se
inspira nas análises (multiculturalismo, mestiçagem) e nos métodos de luta
(invocação da "sociedade civil" e recurso à mídia) correntes nos
Estados Unidos. Para neutralizar os que justificam suas políticas conservadoras
apoiando-se nas "internacionais do establishment" (FMI, Banco Mundial
etc.), seus adversários extraem de dentro dessa armadura modelos alternativos
que circulam através da rede das ONGs. Assim, tanto no centro como na periferia
da nova ordem mundial as lutas internas alimentam e se alimentam da dinâmica da
importação cultural. Concorrentes tanto quanto complementares nos seus efeitos
hegemônicos.
Imposição
de prioridades
Graças ao
recrutamento nos campi das elites, ao apoio financeiro das fundações
filantrópicas e aos numerosos intermediários que dispõem (no campo
universitário mas também o das instituições internacionais), as ONGs baseadas
em Washington podem elaborar mais facilmente estratégias e modelos que
correspondem aos novos desafios políticos ou científicos. Elas estão muito
preocupadas em difundir essas análises, pois esperam, em troca, uma mobilização
da opinião internacional para aumentar a sua influência em Washington. Para as
organizações militantes dos países dominados o problema é diferente. A fraqueza
dos próprios recursos as leva a recorrer ao mercado internacional da
filantropia... que lhes impõe, em troca, suas palavras de ordem e os seus
modelos, senão os seus modos.
Na sua tese
sobre “O mercado internacional da solidariedade”, Benjamin Buclet detalha toda
a ambigüidade da "parceria" entre as grandes ONGs internacionais e as
pequenas estruturas que intervêm no âmbito local. A fim de financiar sua ação
militante, estas últimas devem se inscrever numa lógica de projeto, negociado
com financiadores de fundos internacionais. A concorrência entre projetos
assegura a influência desses gestores financeiros, tanto sobre a definição
"das populações-alvo" como sobre os objetivos e os critérios de
avaliações. Além disso, as prioridades desses gestores são substituídas pelas
das grandes ONGs, bem introduzidas na cena internacional – o que lhes permite
preencher, de fato, um papel de holding no que diz respeito às suas redes de
pequenas ONGs locais, que não dispõem dos recursos sociais que permitem acesso
direto aos financiamentos internacionais. Esse dispositivo cria um
curto-circuito entre os governos nacionais e os notáveis locais, mas permite à
"sociedade civil internacional" assegurar a divulgação dos seus
valores e das suas prioridades, definir quais são as necessidades de
desenvolvimento ou as expectativas de democracia.
Emigração
de militantes
Denunciando
os adeptos do monetarismo que impuseram os seus discípulos – e a sua disciplina
– na chefia das instituições financeiras nacionais dos países em
desenvolvimento, os agentes do "mercado mundial da solidariedade"
prolongam em âmbito local a empresa de reestruturação política nos Estados da
periferia. Quando eles se esforçam em construir sua credibilidade sobre o
assunto, os responsáveis dessas pequenas ONGs não escapam à lógica do
clientelismo. Porta-vozes – mas também "padrinhos" – de populações muito
dependentes, eles são levados a concorrer com os notáveis que dispunham até
então de um quase monopólio sobre o poder político local.
Às vezes,
os lucros obtidos pelos militantes na cena internacional são bem pagos no plano
local porque, incentivados a utilizar os métodos de ação estimados pelos países
democráticos e as ONGs (reuniões pacíficas, exposição dos líderes mais
carismáticos do movimento), eles se defrontam com poderes que não recuam na
frente da violência. O que corresponde melhor aos canhões do protesto
ocidental, mediatização incluída, não é necessariamente o que impressiona mais
nos regimes cuja potência das forças de repressão e o equilíbrio dos poderes
não são nem os de Estocolmo nem os de Washington
Confrontados
com uma luta tão incerta quanto desigual, alguns desses militantes podem estar
tentados a fugir para as grandes cenas da globalização, onde, graças aos
recursos postos à sua disposição, têm a impressão que os seus engajamentos são
não apenas menos arriscados, mas também mais eficazes. Assim, entre os
militantes chilenos que foram os pioneiros dos direitos da pessoa sob a
ditadura de Pinochet, vários, entre os melhores, emigraram para se encontrar na
primeira fila da cena internacional. Alguns o fizeram porque eram perseguidos ou
expulsos, como o professor de direito Jose Zalaquett, que se juntou à Anistia
Internacional em 1976, antes de assumir três anos mais tarde sua presidência.
.
Mas, para a
maior parte, sua partida coincide com o declínio das ONGs chilenas, após a
vitória da coalizão democrática. Porque a nova equipe governamental recorre a
eles para beneficiar sua legitimidade: Roberto Garreton, responsável pelo
comitê jurídico de defesa das vítimas da ditadura, criado no seio do
arcebispado, é, por exemplo, nomeado embaixador dos direitos do homem, antes de
prosseguir sua carreira na ONU como relator especial dos direitos humanos,
especialmente no Zaire. Em termos mais gerais, quando o Chile pára de ser
destaque nas grandes mídias, os financiamentos das ONGs se esgotam, ainda que
as camadas mais desfavorecidas da população chilena continuam a ser vítimas de
violências policiais. Para prosseguir com seu compromisso, certos militantes
escolhem então emigrar, como José Vivenco, que foi para Washington, onde fica
um dos principais porta-vozes da America's Watch.
Inspiração americana
A
internacionalização das lutas nacionais pelas quais se constrói o embrião de
uma sociedade civil mundial contribui, por conseguinte, para impor como
universais estratégias um savoir faire inspirado pela dinâmica da política
americana. A vitória de Ronald Reagan já tinha produzido efeitos paradoxais,
principalmente favorecendo a universalização dos "direitos do homem".
Para construir uma espécie de reação contra o embargo da direita às instituições
de Estado, a fração reformista, freqüentemente democrata, do Foreign Policy
Establishment se apoiou nos recursos de instituições privadas que ela tinha
fundado e cujo controle conservava. Preocupada em incentivar o desenvolvimento
de uma "sociedade civil" capaz de desempenhar um papel de
contra-poder, invocava contra os falcões os quais se cercava Ronald Reagan, uma
moral universal dos direitos da pessoa.
As
fundações filantrópicas desempenharam um papel de reguladores da mobilização
cívica. Na área de meio ambiente, por exemplo, fazendo cintilar suas subvenções
e mobilizando suas redes científicas, a Fundação Ford acelerou a reconversão de
movimentos contestadores ao redor de temáticas "responsáveis". Por
exemplo, fez pressão sobre os responsáveis pelo Environment Defense Fund (FED),
de modo que abandonassem uma estratégia de confrontação que se apoiava sobre a
tribuna judicial para mobilizar a opinião: "Sue the bastards" (Levem
os canalhas à justiça), de acordo com a fórmula favorita do inventor desta diligência.
Capitalismo filantrópico
Alegando
que a responsabilidade civil como financiadores de fundos estava comprometida,
os financeiros da Fundação Ford impuseram uma pré-seleção dos processos por
grandes notáveis da advocacia. Simultaneamente, a fundação incentivou a
negociação dos ecologistas com os industriais. Primeiro, financiando os
trabalhos de uma equipe de economistas da Electricité de France, que
demonstraram que a proteção do meio ambiente não representava apenas um custo,
mas uma fonte de lucros potenciais para as empresas.
Em seguida,
fazendo pressão sobre os múltiplos pequenos grupos de ativistas para que se
agrupassem em estruturas unificadas ao redor de estados maiores profissionais,
capazes de negociar com base numa avaliação científica reconhecida. As grandes
ONGs que doravante passaram a dominar a cena internacional da defesa do meio
ambiente – modernizado sob a denominação de "mercado do desenvolvimento
sustentável" – são o instrumento desta contra-ofensiva inscrita na grande
tradição reformista do capitalismo filantrópico americano, inventado pelos
"barões ladrões".
Pierre
Bourdieu o recordava: "A referência ao universal é a arma por
excelência". O imperialismo sabe avançar sob o estandarte dos direitos do
homem e da (boa) governança. Brincando de parceria com as ONGs, as
multinacionais não têm mais que se apresentar como as campeãs do
"desenvolvimento (de um capitalismo) sustentável".
Le
Monde Diplomatique
Edição
brasileira ano 6 número 65
Yves Dezalay e Bryant Garth *
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