Um produto hoje se torna viável e útil muito mais
pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design, comunicação etc., os chamados
intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho físico. Trata-se de um
deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram
no século passado
O fator-chave de produção no século passado era a
máquina. Hoje, é o conhecimento. Podemos chamar este, enquanto fator de
produção, de capital cognitivo. O embate que hoje se trava no Brasil em torno
da propriedade intelectual, ainda que se apresente sob a roupa simpática da
necessidade de assegurar a remuneração do jovem que publica um livro ou do
pobre músico privado do seu ganha-pão pela pirataria, envolve na realidade o
controle do capital cognitivo. Nas palavras de Ignacy Sachs, no século passado
a luta era por quem controlava as máquinas, os chamados meios de produção.
Hoje, é por quem controla o acesso ao conhecimento. Estamos entrando a passos
largos na sociedade do conhecimento, na economia criativa.
Como sempre, quando se trata de poderosos
interesses, há uma profusão de enunciados empolados sobre ética, mas muito
pouca compreensão, ou vontade de compreender, o que está em jogo. Este artigo
busca trazer um pouco de explicitação dos mecanismos.
Podemos partir da construção teórica muito
transparente que nos apresenta Clay Shirky, no seu Cognitive surplus(Excedente
cognitivo). Primeiro, vem o próprio conceito de excedente cognitivo. Cada um de
nós tem grande quantidade de conhecimentos acumulados, que nos vem tanto de
estudos como de experiência prática. Compartilhamos apenas uma pequena parte
desse conhecimento acumulado, e utilizamos menos ainda o nosso potencial.
Somando o capital cognitivo acumulado em bilhões de pessoas no mundo, temos aí
uma fonte impressionante de riqueza parada ou subutilizada.
Uma dimensão do uso desse capital cognitivo é a que
utilizamos para a nossa sobrevivência, no emprego, nas pequenas negociações do
cotidiano. Mas, de longe, a maior parte fica simplesmente armazenada na nossa
cabeça, às vezes partilhada com filhos e amigos, na esperança que não repitam
as nossas bobagens. E quando nos vem uma grande ideia, nem sempre a
aproveitamos, pois não temos o meio de disponibilizá-la. Fica na nossa cabeça,
com fortes possibilidades de mofo, a não ser que pertençamos ao ambiente de
criação especializado que corresponde, ou surja um espaço colaborativo aberto
em que possamos dar-lhe vazão. Em termos técnicos, é em grande parte um capital
parado, ou travado por conceitos estreitos de interesses comerciais fixados na
lógica da era dos bens materiais, destes que se trancam em casa ou na garagem.
O conhecimento é diferente. Um produto hoje se
torna viável e útil muito mais pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design,
comunicação etc., os chamados intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho
físico. O computador que utilizamos poderá ter 5% de valor pela dimensão física
do produto, e 95% pelo conhecimento incorporado. Trata-se de um
deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram
no século passado. A ideia que tenho não obedece às mesmas regras.
conhecimento muda as relações comerciais
As regras são diferentes porque o conhecimento,
como principal fator de produção de bens e serviços na economia moderna, muda
as relações comerciais. Se peço um quilo de arroz para o meu vizinho,
devolverei o mesmo pacote de arroz, ou o valor equivalente, se não o meu
vizinho terá prejuízo. Mas se ele me dá uma ideia sobre como preparar um bom
prato com esse arroz, eu ganhei uma boa ideia e ele não perdeu nenhuma. Ele
fica feliz por ensinar, eu por aprender. Por isso, aliás, é que todos nós
oferecemos receitas, não o produto. O conhecimento é um fator de produção que,
contrariamente ao arroz, aço, petróleo ou madeira, não reduz quando se consome.
Pelo contrário, como cada ideia tende a gerar outras ideias por via de
associações inovadoras, o estoque de ideias se multiplica. E como a ideia está
se tornando o principal fator de geração de riqueza, todos enriquecem. A não
ser, naturalmente, que alguém diga “esta ideia é minha”, e a tranque em
barreiras virtuais.
A mudança é profunda. Tudo que estudamos em Economia
está centrado na sua missão principal, que é a alocação racional de recursos
escassos: alocação de bens que, se forem utilizados num produto, não estarão
disponíveis para outros. No caso da ideia, do conhecimento, deixam de ser
escassos por duas razões: primeiro, porque pela própria natureza não são bens
rivais, quem comunica uma ideia não deixa de tê-la. Segundo, porque a ideia
sendo imaterial, software da economia por assim dizer, pode ser transmitida em
volumes virtualmente infinitos nas redes de internet que hoje conectam o
planeta: 2 bilhões de pessoas hoje, e durante esta década provavelmente todos
os habitantes, todas as escolas, todas as empresas, repartições públicas,
hospitais ou postos de saúde. É a era da conectividade. Como o conhecimento deixa
de ser escasso, em vez de buscar novas regras, empresas tentam torná-lo
escasso, para que possam cobrar pelo acesso. Em vez de multiplicar riqueza, o
sistema passa a restringi-la.
A mudança atinge também outro ponto básico da
teoria econômica: o das motivações. Durante longo tempo, o nosso raciocínio
econômico se viu paralisado pela magistral simplificação de que as motivações
no comportamento econômico se reduzem à maximização racional de vantagens.
Realmente, se é para apertar 3 mil parafusos por dia, a possível motivação não
está no que fazemos, mas no quanto isso nos rende. Na economia criativa, há uma
grande motivação subestimada: o prazer de realizar uma coisa útil, o gosto de
contribuir, a excitação de uma coisa nova. Junte-se o prazer de construir algo
de forma colaborativa com outras pessoas, a satisfação do trabalho competente,
e temos a mistura necessária para uma profunda transformação nas regras do
jogo. Nas palavras de Shirky: “Assumir que as pessoas são egoístas pode se
tornar uma profecia que se autoconfirma, criando sistemas que asseguram muita
liberdade individual para agir, mas não muito valor público ou gestão de
recursos coletivos para o bem público”.1
Podemos ir além: hoje, colaborar não é apenas uma
oportunidade, é uma necessidade. Para a sobrevivência de todos, o acesso às
tecnologias que reduzem o impacto climático, por exemplo, não só não deve ser
travado por patentes, como fomentado. Generalizar o conhecimento, ampliar a
base planetária de pessoas conscientes, torna-se cada vez mais vital. Afinal,
estamos gastando rios de recursos em educação para depois travar o acesso ao
conhecimento?
De onde vem o sucesso da Wikipédia, a maior e mais
eficiente enciclopédia que a humanidade já produziu? Vem simplesmente do prazer
das pessoas contribuírem para o conhecimento geral. O imenso estoque planetário
de conhecimentos acumulados na cabeça das pessoas, com a sua impressionante
diversidade, pode simplesmente ser transformado em instrumentos úteis para
todos. E na era da economia do conhecimento, quando este se torna o principal
fator de produção de riquezas, colocar em rede tal capital cognitivo melhora a
condição humana. Viver melhor não constitui uma remuneração, ainda que não
monetária? Quase esquecemos o quanto o WWW e a conectividade planetária
resultante estão dinamizando a produtividade de todos nós e melhorando a nossa
qualidade de vida.
Quem administra a internet é uma instituição sem
fins lucrativos. As ondas eletromagnéticas são um bem público.
Qual é a governança do sistema que resulta?
Juntando-se os aportes de livros como Cognitive surplusde Clay Shirky;
Wikinomicsde Don Tapscott e Anthony Williams; Grátis: O futuro dos preços, ou
ainda A cauda longa de Chris Anderson;Apropriação indébita de Gar Alperovitz e
Lew Daly;O futuro das ideias ou Remix de Lawrence Lessig;A era do acesso de
Jeremy Rifkin, e outros, constatamos que estão se desenhando os mecanismos e a
teoria desse novo universo, a economia do conhecimento.
Ladislau Dowbor
Le Monde Diplomatique
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