A ferrovia aberta em meio à mata ainda é uma
ligação importante entre Serra do Navio e o porto de Santana, vizinho à capital
Macapá. O trajeto dura sete horas.
Empoleirado na bicicleta, um menino pedala pela
calçada, embora a rua esteja vazia. Desvia de um hidrante, contorna o jardim
sem cerca de uma casa e desce por uma rampa de concreto. Lá embaixo, outros
meninos e meninas o esperam para uma partida de futebol. Ele encosta a
bicicleta em um pinheiro, descalça o chinelo e entra animado na quadra. O piso
de cimento ainda está molhado. Acaba de cair uma chuva torrencial.
Seria uma cena comum em qualquer localidade da
Amazônia não fosse por alguns detalhes: o que um hidrante, uma casa com jardim
aberto e um pinheiro fazem nessa região? Esses elementos
"estrangeiros" são de outra época, e datam de um período no qual uma
cidade inteira foi construída para abrigar os trabalhadores das minas de
manganês no interior do Amapá.
Serra do Navio pode ser comparada à Fordlândia, a
famosa vila erguida em solo paraense a mando do empresário americano Henry
Ford, nos anos 1930, durante o ciclo da borracha. As duas foram cidades-modelo
no meio da selva. E ambas se enfraqueceram quando a atividade econômica deixou
de ser viável. Mas as coincidências não vão longe. Serra do Navio é mais nova
(foi fundada na década de 1950) e, embora tenha abrigado engenheiros e
trabalhadores americanos, é um projeto brasileiro, da empresa Icomi, de Minas
Gerais. Enquanto a exploração de manganês era lucrativa, a Icomi e sua parceira
americana, a Bethlehem Steel, administravam o município, que era dividido em
dois setores. Na parte alta, o chamado Staff era uma vila onde ficavam as casas
dos engenheiros e administradores, além de um hotel que funcionava como ponto
de encontro e clube social. Em outra área, mais baixa, estavam a administração
da empresa, o hospital, uma igreja ecumênica e as residências geminadas dos
demais trabalhadores.
Mesmo após o fim da exploração do manganês nos anos
1990, a cidade continuou ocupada. Empobreceu, é verdade. Os atuais 4 mil
habitantes vivem da agricultura de subsistência e do dinheiro que a prefeitura
injeta na economia, recebido do governo federal por meio do Fundo de
Participação dos Municípios. Há um pequeno comércio, um hospital sucateado
(que, acredite, já foi modelo) e um cibercafé, com internet via satélite. Em
2010, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou
Serra do Navio, declarando-a Patrimônio Cultural. A iniciativa, no entanto,
pode ter sido tardia.
Projeto do arquiteto modernista Oswaldo Bratke, a
vila foi planejada com conceitos que, atualmente, são considerados
sustentáveis. Para amenizar o forte calor, as casas aproveitam a ventilação
natural com uso de venezianas fixas de madeira. Havia tratamento de esgoto,
coleta de lixo e iluminação pública, serviços inexistentes em muitos municípios
brasileiros na época. O trem trazia passageiros, alimentos, material de
construção e equipamentos. As linhas do trilho ainda constituem a principal
ligação com a capital, Macapá, a cerca de 200 quilômetros.
"O regulamento era rigoroso. Até mesmo na vida
pessoal era preciso cuidado. Se o empregado batia no filho, por exemplo, era
logo advertido", conta Antônio Barbosa, ex-funcionário da Icomi. Operador
da escavadeira Marion - que agora descansa como sucata em uma das minas de
manganês -, ele trabalhou por 31 anos na companhia e hoje mora em uma das casas
do Staff. Se algumas delas ainda mantêm as características originais, outras
estão sendo modificadas - as moradias foram ocupadas por servidores públicos.
Algumas construções já se encontram em ruínas. A piscina do hotel, com
trampolim e raias para competições, acumula água de chuva em seus azulejos
quebrados.
O clube dos funcionários, o Manganês Esporte Clube,
não está em melhores condições, mas ainda é frequentado pelos moradores.
"Na época da mineração, havia enorme rivalidade entre os times de futebol
da companhia", explica Lucival Aranha Duarte, conhecido como "Pato
Rouco". Por 18 anos, ele atuou na Icomi como lubrificador de máquinas pesadas,
mas ganhou destaque mesmo foi defendendo o gol do Mecânica Esporte Clube.
"Cada setor da empresa tinha um time próprio". Atualmente, Lucival
trabalha na prefeitura. Assim como ocorreu com vários outros funcionários da
Icomi, migrar para o poder público foi a única opção de emprego.
"Temos pouco pessoal e recursos escassos para
cuidar do patrimônio. A luta aqui é para manter todos os serviços em
funcionamento", diz Francimar Santos, ex-professora que foi eleita
prefeita de Serra do Navio, enquanto circula por uma feira improvisada no
centro. As barracas vendem legumes, hortaliças, porcos e galinhas, tudo vindo
de produtores nos arredores. "Nem o imposto territorial consigo cobrar,
porque as casas não pertencem aos ocupantes. A arrecadação do município é muito
baixa." As apostas de Francimar concentram-se na volta à mineração e no
implemento do turismo.
A saída da Icomi, nos anos 1990, foi precedida de
uma queda na produção do minério. As várias cavas foram abandonadas, assim como
a unidade de beneficiamento. Nas cercanias de Serra do Navio, as marcas da
mineração são visíveis nas minas abandonadas, nas máquinas deixadas para trás,
nos rejeitos de minério estocados junto à estação de trem. A selva ainda não
reclamou para si essas áreas. Além do pinheiro e de outras árvores exóticas
introduzidas na região, como a mangueira, é comum ver uma espécie australiana,
a acácia, nas regiões de mineração. "Pouco exigente e de crescimento
rápido, ela faria a sombra necessária para proteger o solo das chuvas, criando
condições para a reintrodução das espécies nativas", conta o médico e
ambientalista Paulo Amorim, dono de uma empresa contratada na época pela Icomi
para recuperação das áreas degradadas.
O projeto da prefeita de ver turistas em passagem
pela cidade inclui as minas desativadas. Ao menos uma delas já se tornou local
de lazer: a Lagoa Azul, a poucos quilômetros da vila. Antiga cava, foi tomada
pela água do lençol freático. A incrível cor azul da lagoa, com um tom
artificial, deu margem a certas especulações de que ela estaria contaminada,
talvez por arsênio, uma substância tóxica. "Nunca foram feitos estudos
específicos, mas acredito que o tom da água se deva à interação com a rocha,
rica em sulfeto de ferro. Talvez ela não seja adequada para beber, por causa da
acidez, mas é quase certo que não apresente maiores riscos", analisa o
geólogo Wilson Scarpelli, que trabalhou em Serra do Navio. "Desde a década
de 1960, visito a região com frequência. Nunca houve risco de contaminação por
arsênio", afirma. "O problema ambiental mais sério é mesmo o esgoto,
que passou a ser jogado direto no rio Amapari."
Os estoques de manganês no subsolo parecem ter sido
exauridos. Mas o município pode ter outras jazidas ainda não exploradas, de
ouro e ferro, por exemplo. Esses minérios já são extraídos em Pedra Branca do
Amapari, cidade vizinha. "Já ouvi dizer que os veios de ouro se encaminham
para Serra do Navio. Torço para que seja verdade", diz a prefeita Francimar,
atenta aos royalties que pode arrecadar se a mineração se der em terras de seu
município. Ainda que isso ocorra, no entanto, a sensação é a de que Serra do
Navio perdeu essa oportunidade de progresso. "O natural seria as novas
mineradoras se instalarem aqui, não em Pedra Branca, pois já havia
infraestrutura. Mas as disputas judiciais e o fato de as casas já terem sido
invadidas foram fatores inviabilizadores", diz Wilson Scarpelli.
Outra variável pode atrapalhar os sonhos da
prefeita. Mas, ao mesmo tempo, talvez represente a chance de um futuro melhor e
mais sustentável: cerca de 70% da área do município está protegida e não pode
ser explorada, pois faz parte do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, o
maior do país, com 38 670 quilômetros quadrados (quase do tamanho da Suíça).
A cidade é uma espécie de porta de entrada ao
parque, na fronteira com o Suriname. No entanto, chegar ao Tumucumaque é uma
aventura. Não há estradas, e o caminho natural está no rio Amapari, cheio de
corredeiras traiçoeiras. A dificuldade de acesso, a complexidade de seus
ecossistemas e as características do relevo tornam a área de alto interesse
para a ciência. Na década de 1950, o editor de NATIONAL GEOGRAPHIC Paul Zahl
esteve em Serra do Navio, à procura de insetos, que foram tema da reportagem
"Insetos gigantes da Amazônia", em 1959. "Nessa região estão as
mais soberbas torres de florestas tropicais da América do Sul", escreveu.
Sobre a capa de uma edição antiga, Zahl fotografou um Titanus giganteus, o
maior besouro do mundo, coletado nos arredores. "Procurando insetos com
ajudantes prestimosos recrutados em Serra do Navio, explorei trilhas, escalei
barrancos, revirei troncos caídos, arranquei cascas de árvores, matei uma ou
outra serpente, escavei montes de húmus e rondei horas e horas à noite sob a
luz de holofotes", narra Zahl na reportagem.
Muito além dos insetos, a reserva de Tumucumaque
guarda grande quantidade de espécies de animais e plantas à espera de
catalogação científica - um patrimônio natural que parece conter a fonte de
recursos esperada por Serra do Navio desde a saída da mineradora. A resposta
tão procurada pode estar no uso sustentável do ambiente, explorado por meio do
turismo e da coleta racional dos produtos da floresta. Quem diria: a
recuperação de um patrimônio arquitetônico em risco, erguido pelo valor do
minério extraído do solo, reside em um parque nacional e em toda a vida que
explode sob a copa de suas árvores gigantescas.
Fonte: National Geographic Brasil
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