Geografia da Amizade

Geografia da Amizade

Amizade...Amor:
Uma gota suave que tomba
No cálice da vida
Para diminuir seu amargor...
Amizade é um rasto de Deus
Nas praias dos homens;
Um lampejo do eterno
Riscando as trevas do tempo.
Sem o calor humano do amigo
A vida seria um deserto.
Amigo é alguém sempre perto,
Alguém presente,
Mesmo, quando longe, geograficamente.
Amigo é uma Segunda eucaristia,
Um Deus-conosco, bem gente,
Não em fragmentos de pão,
Mas no mistério de dois corações
Permutando sintonia
Num dueto de gratidão.
Na geografia
da amizade,
Do amor,
Até hoje não descobri
Se o amigo é luz, estrela,
Ou perfume de flor.
Sei apenas, com precisão,
Que ele torna mais rica e mais bela
A vida se faz canção!

"Roque Schneider"



Quem sou eu

Salvador, Bahia, Brazil
Especialista em Turismo e Hospitalidade, Geógrafa, soteropolitana, professora.

domingo, 4 de setembro de 2011

Viagem no tempo Nos anos 1950, uma cidade-modelo surgia na Floresta Amazônica. Restaram hidrantes, plantas exóticas, casas decadentes e uma jornada de trem no meio da selva.


A ferrovia aberta em meio à mata ainda é uma ligação importante entre Serra do Navio e o porto de Santana, vizinho à capital Macapá. O trajeto dura sete horas.

Empoleirado na bicicleta, um menino pedala pela calçada, embora a rua esteja vazia. Desvia de um hidrante, contorna o jardim sem cerca de uma casa e desce por uma rampa de concreto. Lá embaixo, outros meninos e meninas o esperam para uma partida de futebol. Ele encosta a bicicleta em um pinheiro, descalça o chinelo e entra animado na quadra. O piso de cimento ainda está molhado. Acaba de cair uma chuva torrencial.
Seria uma cena comum em qualquer localidade da Amazônia não fosse por alguns detalhes: o que um hidrante, uma casa com jardim aberto e um pinheiro fazem nessa região? Esses elementos "estrangeiros" são de outra época, e datam de um período no qual uma cidade inteira foi construída para abrigar os trabalhadores das minas de manganês no interior do Amapá.
Serra do Navio pode ser comparada à Fordlândia, a famosa vila erguida em solo paraense a mando do empresário americano Henry Ford, nos anos 1930, durante o ciclo da borracha. As duas foram cidades-modelo no meio da selva. E ambas se enfraqueceram quando a atividade econômica deixou de ser viável. Mas as coincidências não vão longe. Serra do Navio é mais nova (foi fundada na década de 1950) e, embora tenha abrigado engenheiros e trabalhadores americanos, é um projeto brasileiro, da empresa Icomi, de Minas Gerais. Enquanto a exploração de manganês era lucrativa, a Icomi e sua parceira americana, a Bethlehem Steel, administravam o município, que era dividido em dois setores. Na parte alta, o chamado Staff era uma vila onde ficavam as casas dos engenheiros e administradores, além de um hotel que funcionava como ponto de encontro e clube social. Em outra área, mais baixa, estavam a administração da empresa, o hospital, uma igreja ecumênica e as residências geminadas dos demais trabalhadores.
Mesmo após o fim da exploração do manganês nos anos 1990, a cidade continuou ocupada. Empobreceu, é verdade. Os atuais 4 mil habitantes vivem da agricultura de subsistência e do dinheiro que a prefeitura injeta na economia, recebido do governo federal por meio do Fundo de Participação dos Municípios. Há um pequeno comércio, um hospital sucateado (que, acredite, já foi modelo) e um cibercafé, com internet via satélite. Em 2010, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou Serra do Navio, declarando-a Patrimônio Cultural. A iniciativa, no entanto, pode ter sido tardia.
Projeto do arquiteto modernista Oswaldo Bratke, a vila foi planejada com conceitos que, atualmente, são considerados sustentáveis. Para amenizar o forte calor, as casas aproveitam a ventilação natural com uso de venezianas fixas de madeira. Havia tratamento de esgoto, coleta de lixo e iluminação pública, serviços inexistentes em muitos municípios brasileiros na época. O trem trazia passageiros, alimentos, material de construção e equipamentos. As linhas do trilho ainda constituem a principal ligação com a capital, Macapá, a cerca de 200 quilômetros.
"O regulamento era rigoroso. Até mesmo na vida pessoal era preciso cuidado. Se o empregado batia no filho, por exemplo, era logo advertido", conta Antônio Barbosa, ex-funcionário da Icomi. Operador da escavadeira Marion - que agora descansa como sucata em uma das minas de manganês -, ele trabalhou por 31 anos na companhia e hoje mora em uma das casas do Staff. Se algumas delas ainda mantêm as características originais, outras estão sendo modificadas - as moradias foram ocupadas por servidores públicos. Algumas construções já se encontram em ruínas. A piscina do hotel, com trampolim e raias para competições, acumula água de chuva em seus azulejos quebrados.
O clube dos funcionários, o Manganês Esporte Clube, não está em melhores condições, mas ainda é frequentado pelos moradores. "Na época da mineração, havia enorme rivalidade entre os times de futebol da companhia", explica Lucival Aranha Duarte, conhecido como "Pato Rouco". Por 18 anos, ele atuou na Icomi como lubrificador de máquinas pesadas, mas ganhou destaque mesmo foi defendendo o gol do Mecânica Esporte Clube. "Cada setor da empresa tinha um time próprio". Atualmente, Lucival trabalha na prefeitura. Assim como ocorreu com vários outros funcionários da Icomi, migrar para o poder público foi a única opção de emprego.
"Temos pouco pessoal e recursos escassos para cuidar do patrimônio. A luta aqui é para manter todos os serviços em funcionamento", diz Francimar Santos, ex-professora que foi eleita prefeita de Serra do Navio, enquanto circula por uma feira improvisada no centro. As barracas vendem legumes, hortaliças, porcos e galinhas, tudo vindo de produtores nos arredores. "Nem o imposto territorial consigo cobrar, porque as casas não pertencem aos ocupantes. A arrecadação do município é muito baixa." As apostas de Francimar concentram-se na volta à mineração e no implemento do turismo.
A saída da Icomi, nos anos 1990, foi precedida de uma queda na produção do minério. As várias cavas foram abandonadas, assim como a unidade de beneficiamento. Nas cercanias de Serra do Navio, as marcas da mineração são visíveis nas minas abandonadas, nas máquinas deixadas para trás, nos rejeitos de minério estocados junto à estação de trem. A selva ainda não reclamou para si essas áreas. Além do pinheiro e de outras árvores exóticas introduzidas na região, como a mangueira, é comum ver uma espécie australiana, a acácia, nas regiões de mineração. "Pouco exigente e de crescimento rápido, ela faria a sombra necessária para proteger o solo das chuvas, criando condições para a reintrodução das espécies nativas", conta o médico e ambientalista Paulo Amorim, dono de uma empresa contratada na época pela Icomi para recuperação das áreas degradadas.
O projeto da prefeita de ver turistas em passagem pela cidade inclui as minas desativadas. Ao menos uma delas já se tornou local de lazer: a Lagoa Azul, a poucos quilômetros da vila. Antiga cava, foi tomada pela água do lençol freático. A incrível cor azul da lagoa, com um tom artificial, deu margem a certas especulações de que ela estaria contaminada, talvez por arsênio, uma substância tóxica. "Nunca foram feitos estudos específicos, mas acredito que o tom da água se deva à interação com a rocha, rica em sulfeto de ferro. Talvez ela não seja adequada para beber, por causa da acidez, mas é quase certo que não apresente maiores riscos", analisa o geólogo Wilson Scarpelli, que trabalhou em Serra do Navio. "Desde a década de 1960, visito a região com frequência. Nunca houve risco de contaminação por arsênio", afirma. "O problema ambiental mais sério é mesmo o esgoto, que passou a ser jogado direto no rio Amapari."
Os estoques de manganês no subsolo parecem ter sido exauridos. Mas o município pode ter outras jazidas ainda não exploradas, de ouro e ferro, por exemplo. Esses minérios já são extraídos em Pedra Branca do Amapari, cidade vizinha. "Já ouvi dizer que os veios de ouro se encaminham para Serra do Navio. Torço para que seja verdade", diz a prefeita Francimar, atenta aos royalties que pode arrecadar se a mineração se der em terras de seu município. Ainda que isso ocorra, no entanto, a sensação é a de que Serra do Navio perdeu essa oportunidade de progresso. "O natural seria as novas mineradoras se instalarem aqui, não em Pedra Branca, pois já havia infraestrutura. Mas as disputas judiciais e o fato de as casas já terem sido invadidas foram fatores inviabilizadores", diz Wilson Scarpelli.
Outra variável pode atrapalhar os sonhos da prefeita. Mas, ao mesmo tempo, talvez represente a chance de um futuro melhor e mais sustentável: cerca de 70% da área do município está protegida e não pode ser explorada, pois faz parte do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, o maior do país, com 38 670 quilômetros quadrados (quase do tamanho da Suíça).
A cidade é uma espécie de porta de entrada ao parque, na fronteira com o Suriname. No entanto, chegar ao Tumucumaque é uma aventura. Não há estradas, e o caminho natural está no rio Amapari, cheio de corredeiras traiçoeiras. A dificuldade de acesso, a complexidade de seus ecossistemas e as características do relevo tornam a área de alto interesse para a ciência. Na década de 1950, o editor de NATIONAL GEOGRAPHIC Paul Zahl esteve em Serra do Navio, à procura de insetos, que foram tema da reportagem "Insetos gigantes da Amazônia", em 1959. "Nessa região estão as mais soberbas torres de florestas tropicais da América do Sul", escreveu. Sobre a capa de uma edição antiga, Zahl fotografou um Titanus giganteus, o maior besouro do mundo, coletado nos arredores. "Procurando insetos com ajudantes prestimosos recrutados em Serra do Navio, explorei trilhas, escalei barrancos, revirei troncos caídos, arranquei cascas de árvores, matei uma ou outra serpente, escavei montes de húmus e rondei horas e horas à noite sob a luz de holofotes", narra Zahl na reportagem.
Muito além dos insetos, a reserva de Tumucumaque guarda grande quantidade de espécies de animais e plantas à espera de catalogação científica - um patrimônio natural que parece conter a fonte de recursos esperada por Serra do Navio desde a saída da mineradora. A resposta tão procurada pode estar no uso sustentável do ambiente, explorado por meio do turismo e da coleta racional dos produtos da floresta. Quem diria: a recuperação de um patrimônio arquitetônico em risco, erguido pelo valor do minério extraído do solo, reside em um parque nacional e em toda a vida que explode sob a copa de suas árvores gigantescas.

                                                                                Fonte:  National Geographic Brasil

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