Certo
dia no outono de 1677 na cidade holandesa de Delft, Antoni van Leeuwenhoek, um
mercador de tecidos que se supõe ter servido de modelo para dois quadros de
Johannes Vermeer - O Astrônomo e O Geógrafo -, saiu da cama, interrompendo de
repente o que estava fazendo com sua mulher, e correu para a mesa de trabalho.
Os tecidos permitiam a Leeuwenhoek ganhar a vida, mas o que o fascinava mesmo
era a microscopia.
Leeuwenhoek possuía uma lupa
minúscula e poderosa, feita por ele mesmo. Na Real Sociedade de Londres, sábios
ainda estavam tentando comprovar a alegação anterior de Leeuwenhoek, segundo o
qual havia milhões de "animálculos" invisíveis em uma única gota d’água de um lago e até mesmo no vinho francês. Agora ele tinha algo
mais constrangedor a relatar: o sêmen humano também estava repleto daqueles
animálculos. "Às vezes mais de um milhar", escreveu, "em uma
quantidade pequena de material como um grão de areia." O holandês
observou seus próprios animálculos nadando de um lado para outro, impulsionados
por sua longa cauda.
Depois disso, Leeuwenhoek ficou
obcecado. Embora a lupa lhe proporcionasse acesso privilegiado a um universo
infinitesimal jamais visto, ele dedicou um tempo descomunal a examinar os
animálculos hoje conhecidos como espermatozoides. E, curiosamente, foi o
líquido seminal que extraiu de um bacalhau que o inspirou, quase por acaso, a
tentar calcular a quantidade máxima de pessoas que poderiam viver na Terra.
Ninguém na época tinha a menor
ideia, pois os censos eram raros. Leeuwenhoek, então, partiu da estimativa de
que cerca de 1 milhão de pessoas viviam na Holanda. Recorrendo a mapas e noções
de geometria esférica, ele calculou que a área terrestre habitada do planeta
era 13 385 vezes maior que a da Holanda. Era difícil imaginar o planeta todo
mais densamente povoado que o próprio país, que na época já parecia bastante
apinhado. Portanto, sua conclusão triunfante foi a de que a Terra não poderia
abrigar mais que 13 385 bilhões de pessoas - número até que pequeno se
comparado às 150 bilhões de células espermáticas presentes em um único
bacalhau! Esses cálculos singelos e otimistas, segundo o biólogo Joel Cohen, no
livro How Many People Can the Earth Support? ("Quantas pessoas a Terra
pode sustentar?", não lançado no Brasil), foram a primeira tentativa de se
dar uma resposta quantitativa a uma questão que se tornou hoje bem mais urgente
do que era no século 17. No entanto, a maioria das respostas atuais está longe
de ser otimista.
De acordo com as estimativas mais
recentes dos historiadores, na época de Leeuwenhoek havia apenas cerca de meio
bilhão de seres humanos no mundo. Após crescer bem devagar durante milênios,
esse número estava começando a ganhar impulso. Um século e meio depois, quando
outro cientista comunicou a descoberta dos óvulos humanos, a população mundial
tinha dobrado e ultrapassado a marca de 1 bilhão. Um século depois disso, por
volta de 1930, ela havia dobrado mais uma vez, agora para 2 bilhões. Desde
então a aceleração do crescimento demográfico foi assombrosa. Antes do século
20, nenhum ser humano tinha vivido o suficiente para testemunhar uma duplicação
da população mundial, mas hoje há pessoas que a viram triplicar. Em algum
momento no fim de 2011, segundo a Divisão de População das Nações Unidas,
seremos 7 bilhões de pessoas.
Embora seu ritmo esteja
diminuindo, essa explosão demográfica está longe de terminar. As pessoas
passaram a viver mais tempo e há tantas mulheres ao redor do mundo em idade de
procriar - 1,8 bilhão - que a população global ainda vai continuar crescendo
pelo menos durante algumas décadas, mesmo que cada mulher tenha menos filhos
que na geração anterior. Até 2050, o total de seres humanos no planeta pode
chegar a 10,5 bilhões ou então se estabilizar por volta dos 8 bilhões - a
diferença é de cerca de um filho para cada mulher. Os demógrafos da ONU
consideram mais provável a estimativa média: eles estão projetando uma
população mundial de 9 bilhões antes de 2050 - em 2045. O resultado final dependerá
das escolhas feitas pelo casal quando realizar o mais íntimo dos atos humanos -
aquele que, em prol da ciência, Leeuwenhoek interrompeu com tanto descaso.
Com a população mundial a
aumentar ao ritmo de cerca de 80 milhões de pessoas por ano, é difícil não
ficar alarmado. Em toda a Terra, os lençóis freáticos estão cedendo, os solos
ficando cada vez mais erodidos, as geleiras derretendo e os estoques de pescado
prestes a ser esgotados. Quase 1 bilhão de pessoas passam fome todo o dia.
Daqui a algumas décadas, haverá mais 2 bilhões de bocas a ser alimentadas, a
maioria em países pobres. E bilhões de outras pessoas lutarão para sair da
miséria. Se seguirem pelo caminho percorrido pelas nações desenvolvidas -
desmatando florestas, queimando carvão e petróleo, usando fertilizantes e
pesticidas com abundância -, vai ser enorme o impacto sobre os recursos
naturais do planeta. Como podemos conciliar tudo isso?
Talvez seja reconfortante saber
que há muito o crescimento demográfico é motivo de preocupação. Desde o início,
diz o francês Hervé Le Bras, a demografia esteve impregnada de discussões
apocalípticas. Alguns dos textos fundamentais da disciplina foram escritos por
sir William Petty, um dos fundadores da Real Sociedade de Londres. Segundo
Petty, a população mundial duplicaria seis vezes até o Juízo Final, que se
esperava ocorreria daqui a 2 mil anos. Naquela altura, a população superaria os
20 bilhões - ultrapassando a capacidade de produção de alimentos do planeta.
"E então, de acordo com a previsão das Escrituras, devem ocorrer guerras e
grandes matanças", escreveu ele.
Com o recuo das previsões
religiosas do fim do mundo, argumenta Le Bras, o próprio crescimento
demográfico proporcionou outro mecanismo apocalíptico. "Ele cristalizou o
temor ancestral, e talvez a esperança ancestral, do fim dos tempos",
escreveu ele. Em 1798, o clérigo e economista inglês Thomas Malthus expôs seu
princípio geral da população, afirmando que ela necessariamente aumenta com
maior rapidez que a produção de alimentos até um ponto em que ocorrem guerras,
doenças e fome, reduzindo assim a quantidade de gente. Na realidade, os últimos
flagelos de escala grande o suficiente para reduzir a população global já
haviam ocorrido bem antes de Malthus publicar seu ensaio. A população mundial
não havia caído, segundo os historiadores, desde a peste negra do século 14.
Nos dois séculos posteriores à
afirmação de Malthus de que a população não poderia continuar crescendo, foi
exatamente isso o que ocorreu. O processo começou nos países hoje chamados de
desenvolvidos. A difusão de plantas do Novo Mundo como milho e batata, assim
como a descoberta dos fertilizantes químicos, baniu a fome da Europa. A partir
do século 19, os esgotos passaram a canalizar os dejetos humanos para longe da
água potável, que em seguida foi filtrada e clorada, e isso provocou uma
redução dramática na disseminação de cólera e tifo.
Em 1798, no mesmo ano em que
Malthus publicou seu ensaio pessimista, o inglês Edward Jenner anunciou a
descoberta de uma vacina contra a varíola - a primeira de uma série de vacinas
e antibióticos que, em conjunto com melhorias na nutrição e no saneamento,
acabariam dobrando a expectativa de vida nos países que se industrializavam, de
35 para os 77 anos atuais. "O desenvolvimento da ciência médica foi a gota
que entornou o caldo", escreveu em 1968 o biólogo e especialista em
demografia Paul R. Ehrlich.
O livro que Ehrlich publicou, The
Population Bomb ("A bomba demográfica", não disponível em português),
fez dele o mais famoso dos malthusianos modernos. Nos anos 1970, ele previu que
"centenas de milhões de pessoas morrerão de fome", e que era tarde
demais para se fazer algo. "O câncer do crescimento demográfico [...]
precisa ser extirpado", escreveu, "e de maneira compulsória, caso
fracassem os métodos voluntários." O próprio futuro dos Estados Unidos
estava em perigo. Apesar desse tom, ou talvez por causa dele, o livro virou um best-seller,
tal como ocorrera com o ensaio de Malthus. Mas também dessa vez a bomba não
explodiu. Na época já estava em curso a chamada revolução verde, uma combinação
de sementes melhoradas, irrigação, pesticidas e fertilizantes que permitiu
duplicar a produção mundial de cereais. Hoje ainda há muita gente desnutrida,
mas é rara a fome em escala maciça.
Todavia, Ehrlich tinha razão ao
dizer que os avanços na medicina acabariam por levar a um surto demográfico.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os países em desenvolvimento receberam súbita
transfusão de cuidados preventivos, graças a iniciativas de instituições como a
Organização Mundial de Saúde e a Unicef. A penicilina, a vacina contra a
varíola e o DDT (que, embora controverso mais tarde, evitou que milhões de
pessoas morressem de malária) surgiram ao mesmo tempo. Na Índia, a expectativa
de vida saltou de 38 anos em 1952 para 64 atualmente; na China, de 41 para 73
anos. Milhões de pessoas nos países em desenvolvimento que não teriam passado
da infância sobreviveram e puderam ter filhos. Este é o motivo pelo qual houve
um surto demográfico em todo o planeta: porque se evitou a morte de uma enorme
quantidade de pessoas. E também porque, por um tempo, as mulheres continuaram a
ter muitos filhos. Na Europa do século 18 e na Ásia do início do século 20,
quando tinha em média seis filhos, uma mulher estava fazendo o que era natural,
pois a maioria dos filhos jamais chegava à idade adulta. Com a redução da
mortalidade infantil, os casais passaram a ter menos filhos - mas essa transição
em geral leva pelo menos uma geração. Atualmente, nos países desenvolvidos, a
média de 2,1 filhos por mulher manteria a população constante; no mundo em
desenvolvimento, esse nível de fertilidade de "reposição" é um pouco
mais alto. A explosão demográfica ocorre nesse intervalo necessário para que a
taxa de natalidade alcance novo equilíbrio com a taxa de mortalidade.
O fenômeno é chamado pelos
demógrafos de "transição demográfica". Chega um momento em que todos os
países passam por isso. É um dos sinais do progresso: em um país que completou
a transição, as pessoas retomam da natureza pelo menos algum controle sobre a
morte e o nascimento. A explosão da população é um efeito colateral inevitável.
No entanto, a taxa de crescimento estava no ápice bem na época em que Ehrlich
soou o alarme. No início dos anos 1970, as taxas de fecundidade em todo o mundo
haviam começado a despencar - com maior rapidez que o previsto. Desde então, a
taxa de crescimento da população já caiu mais de 40%.
Esse declínio da fertilidade que
hoje vigora em todo o planeta teve início em épocas distintas conforme o país.
A França foi uma das primeiras. Até o começo do século 18, as mulheres nobres
na corte francesa desfrutavam dos prazeres carnais e nunca tinham mais de dois
filhos. Para isso, recorriam ao mesmo método anticoncepcional usado por
Leeuwenhoek para realizar seus estudos: a interrupção do coito. A inovacão
crucial era de natureza conceitual, e não anticoncepcional, como diz Gilles Pison,
do Instituto Nacional de Estudos Demográficos em Paris. Até a época do
Iluminismo, "a quantidade de crianças que se tinha era algo que estava nas
mãos de Deus. As pessoas não se davam conta de que poderiam tomar as
rédeas".
Outras nações ocidentais acabaram
seguindo o caminho da França. Por volta da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a
fertilidade havia declinado quase ao nível de reposição em partes da Europa e
nos Estados Unidos. Em seguida ao conflito, passado o inesperado pico conhecido
como "baby boom" (1946-1958), a queda foi retomada, surpreendendo de
novo os demógrafos. Eles tinham como pressuposto que algum instinto faria com
que as mulheres continuassem a ter filhos em número suficiente para assegurar a
sobrevivência da espécie. Em vez disso, em um país desenvolvido após outro, a
taxa de fecundidade caiu abaixo do nível de reposição. No fim dos anos 1990, na
Europa, chegou a apenas 1,4 filho por mulher.
O fim do baby boom costuma ter
dois efeitos importantes na economia de um país. O primeiro é o "dividendo
demográfico" - algumas poucas décadas afortunadas durante as quais os
membros dessa geração inflam a força de trabalho, ao mesmo tempo que se mantém
baixa a quantidade de dependentes jovens e idosos; em consequência, sobra mais
dinheiro para outros gastos. Mas em seguida vem o segundo efeito, quando todos
esses trabalhadores envelhecem e começam a se aposentar. O que antes parecia
uma situação demográfica perene agora virou uma festa prestes a acabar. Um
problema se apresenta hoje a todo o mundo desenvolvido: o de achar meios para
sustentar uma população cada vez mais idosa. "Em 2050 vai haver
trabalhadores em quantidade suficiente para assegurar o pagamento das
pensões?", indaga Frans Willekens, do Instituto Demográfico Interdisciplinar
dos Países Baixos. "A resposta é simples: não."
Nos países industrializados foram
necessárias gerações para que a fertilidade caísse ao nível de reposição ou
mesmo ficasse abaixo dele. Agora que essa transição está ocorrendo no resto do
mundo, os demógrafos assombram-se com a rapidez do processo. Embora sua
população continue a crescer, a China, que abriga um quinto de todos os seres
humanos, apresenta uma taxa abaixo do nível de reposição, e isso vem se
registrando há quase duas décadas, graças em parte à política compulsória de um
filho por casal, implementada em 1979. As mulheres chinesas, que costumavam ter
em média seis filhos até uma data tão recente quanto 1965, agora têm em torno
de 1,5. No Irã, com apoio do regime islâmico, a fertilidade despencou mais de
70% desde a década de 1980. No Brasil democrático e católico, as mulheres
reduziram a taxa de fecundidade pela metade nesse mesmo quarto de século.
"Ainda não sabemos por que a fertilidade caiu tão rapidamente em tantas
sociedades, com as mais diversas culturas e religiões. É algo que nos deixa
perplexos", diz Hania Zlotnik, diretora da Divisão de População das Nações
Unidas.
"Neste momento, por mais que
quisesse dizer que ainda há um problema de taxas altas de fecundidade, o fato é
que isso afeta apenas 16% da população mundial, sobretudo na África", diz
Hania. Ao sul do Saara, a fertilidade média ainda é de cinco filhos por mulher;
no Níger, chega a sete. Por outro lado, 17 dos países nessa região ainda
convivem com uma esperança de vida de 50 anos ou menos - ou seja, estão apenas
começando a transição demográfica. Na maior parte do mundo, porém, o tamanho
das famílias diminuiu de maneira dramática. A ONU estima que o planeta
alcançará a taxa de fecundidade mínima de reposição até 2030. "A população
como um todo está no rumo de uma não explosão - e essa é uma notícia boa",
diz Hania.
A notícia ruim é que faltam duas
décadas até 2030, quando a maior geração de adolescentes da história estará
entrando no período de procriação. Mesmo se cada uma dessas mulheres tiver
apenas dois filhos, a população continuará aumentando, impelida por sua
inércia, durante ainda outro quarto de século. Quase uma em cada seis dessas
pessoas estará vivendo na Índia.
Fazia tempo que eu entendia, em
termos intelectuais, a explosão demográfica. Porém, em termos emocionais, isso
ficou claro para mim numa noite quente em Délhi alguns anos atrás... A
temperatura estava em torno de 40 graus, e o ar era uma névoa de poeira e fumaça.
As ruas fervilhavam de gente. Pessoas comendo, pessoas se lavando, pessoas
dormindo. Pessoas fazendo visitas, discutindo e gritando. Pessoas enfiando as
mãos pela janela do táxi pedindo esmola. Pessoas defecando e urinando. Pessoas
penduradas nos ônibus. Pessoas conduzindo animais. Pessoas, pessoas, pessoas,
pessoas. - Paul Ehrlich
Em 1966, quando Ehrlich fez esse
percurso de táxi, havia em torno de meio bilhão de indianos. Hoje a Índia conta
com 1,2 bilhão de habitantes. A população de Délhi aumentou de maneira ainda
mais acelerada, para cerca de 22 milhões, à medida que muitos abandonaram seus
povoados e vilarejos para viver nas imensas favelas da cidade. No início de
junho do ano passado, em meio ao calor absurdo de Délhi, a monção de verão ainda
não chegara para limpar o pó dos canteiros de obras que se somava à poeira
trazida dos desertos do Rajastão. Nas novas vias expressas da cidade sem
planejamento, carros de boi seguiam na contramão. Famílias de quatro pessoas
circulavam em motos, os lenços das mulheres esvoaçando, bebês pendurados em
seus braços. No tráfego, inválidos e crianças emaciadas pediam esmolas aos
gritos. A Délhi atual é diferente daquela visitada por Ehrlich, mas também é
parecida.
No Hospital Lok Nayak, na parte
antiga de Délhi, uma maré humana passa pelo portão de entrada todas as manhãs.
"Quem, ao ver isso, não ficaria preocupado com a população da
Índia?", pergunta em uma tarde o cirurgião Chandan Bortamuly enquanto abre
caminho para a sua clínica de vasectomia. Bortalumy entra na pequena sala de
operações, onde dois homens estão deitados nas mesas, seus testículos expostos
através de buracos nos lençóis verdes. Um ventilador no teto faz circular o ar
frio lançado por duas unidades de ar-condicionado no quarto.
Bortamuly está na linha de frente
de uma batalha que vem sendo travada na Índia há quase seis décadas. Em 1952,
apenas cinco anos depois de ter se tornado independente da Grã-Bretanha, a
Índia foi o primeiro país a adotar uma política de controle da população. Desde
então, o governo estabeleceu repetidas vezes metas ambiciosas - e repetidas
vezes fracassou na hora de alcançá-las. Em 2000, uma iniciativa nacional previa
que o país alcançaria a taxa de reposição de 2,1 em 2010. No entanto, será
preciso esperar pelo menos mais uma década para isso acontecer. De acordo com a
projeção média da ONU, a população da Índia vai aumentar para mais de 1,6
bilhão até 2050. "É inevitável que a demografia indiana supere a da China
até 2030", diz A.R. Nanda, ex-responsável pela organização não
governamental Fundação População da Índia. "Só uma imensa catástrofe,
nuclear ou de outro tipo, poderia mudar isso."
A esterilização é a principal
forma de controle de natalidade na Índia, e a maioria das operações é realizada
em mulheres. O governo vem se empenhando para mudar isso; uma vasectomia sem
bisturi é bem mais barata e fácil de ser realizada no homem que uma ligadura de
trompas na mulher. "Eles dizem que a picada da agulha é como a de uma
formiga", diz Bortamuly quando um paciente se retrai ao receber o
anestésico local. "Depois disso, é um procedimento indolor e sem
sangramento." Com a ponta do fórceps, Bortalumy abre um pequeno orifício
na pele do escroto e puxa para fora uma alça do canal que conduz o esperma do
testículo direito do paciente. Em seguida, ele amarra as pontas da alça com um
fio preto fino, corta as pontas e as empurra de volta para debaixo da pele. Em
menos de sete minutos - o tempo foi cronometrado por uma enfermeira - o
paciente vai embora. Ele terá direito a receber do governo uma taxa de
incentivo no valor de 1 100 rúpias (uns 25 dólares), o equivalente ao salário
semanal de um trabalhador.
Na década de 1970, auge da
preocupação com a bomba demográfica, o governo indiano fez outra tentativa de
promover a vasectomia. A primeira-ministra Indira Gandhi e seu filho Sanjay
usaram os poderes associados ao estado de emergência para obter um aumento nas
esterilizações. De 1976 a 1977, a quantidade de operações triplicou, chegando a
mais de 8 milhões, das quais mais de 6 milhões eram vasectomias. Os
funcionários encarregados do planejamento familiar eram pressionados a cumprir
cotas; ser esterilizada passou a ser um requisito para a pessoa ter acesso a
novas moradias ou outros benefícios governamentais. Em outros casos, a polícia
simplesmente arrebanhava os mais pobres e os conduzia a centros improvisados de
esterilização.
Esses excessos prejudicaram toda
a ideia de planejamento familiar. "Governos sucessivos se recusaram a
tratar dessa questão", comenta Shailaja Chandra, ex-diretora do Fundo
Nacional de Estabilização da População (NPSF, na sigla em inglês). Mesmo assim,
a fertilidade na Índia acabou declinando, embora não com a mesma rapidez da
China, onde ela estava despencando mesmo antes da implantação da rigorosa
política de filho único. A atual média nacional na Índia é de 2,6 filhos por
mulher, menos da metade na época em que Ehrlich visitou o país. A região sul do
país e alguns estados setentrionais já alcançaram ou estão abaixo da taxa de
reposição.
Em Kerala, no sudoeste, os
investimentos em saúde e educação fizeram com que a taxa de fecundidade caísse
para 1,7. O crucial, segundo os demógrafos locais, é a taxa de alfabetização das
mulheres, por volta de 90% - sem dúvida, a mais alta da Índia. As jovens que
frequentam a escola começam a ter filhos mais tarde que as outras. Também são
mais receptivas a métodos contraceptivos e mais informadas de suas opções.
Até agora, essa abordagem,
apresentada como modelo para o resto do mundo, não se difundiu nos estados
pobres do norte da Índia - o chamado cinturão hindu, que corta o país de um
lado a outro logo ao sul de Délhi. Quase metade do crescimento demográfico do
país está concentrado nos estados do Rajastão, Madhya Pradesh, Bihar e Uttar
Pradesh, em que as taxas de fecundidade ainda variam de três a quatro filhos
por mulher. A maioria delas nesse cinturão é analfabeta, e muitas se casam bem
antes da idade legal de 18 anos. A maternidade confere prestígio social - e em
geral as mulheres não descansam enquanto não têm pelo menos um filho.
Como alternativa ao modelo de
Kerala, há quem mencione o estado meridional de Andhra Pradesh, onde
"centros" de esterilização foram instalados na década de 1970 e cujos
níveis de esterilização permaneceram elevados, pois tais clínicas improvisadas
foram sendo substituídas por hospitais. Em uma única década desde o início do
anos 1990, houve uma queda na taxa de fecundidade de três para menos de dois
filhos por mulher. Ao contrário de Kerala, metade das mulheres em Andhra
Pradesh é analfabeta.
Para Amarjit Singh, o atual
diretor executivo do NPSF, se os quatro maiores estados do cinturão hindu
tivessem adotado o modelo de Andhra Pradesh, eles teriam evitado 40 milhões de
nascimentos - e também muito sofrimento. "Desses 40 milhões de crianças,
2,5 milhões morreram na infância", diz Singh. Ele está convencido de que,
se toda a Índia adotasse programas de esterilização de qualidade, o país
chegaria a 2050 com 1,4 bilhão de habitantes, em vez de 1,6 bilhão.
Por ouro lado, os críticos do
modelo de Andhra Pradesh, como A.R. Nanda, acreditam que os indianos precisam
mesmo é de um sistema de saúde melhor, sobretudo nas áreas rurais. Eles se
opõem às metas quantitativas que forçam os órgãos públicos a esterilizar as
pessoas ou aos incentivos em dinheiro que distorcem o modo como os casais
escolhem o tamanho da família.
Hoje, nas cidades indianas,
muitos casais estão fazendo a mesma escolha que seus equivalentes na Europa ou
nos Estados Unidos. Sonalde Desai, do Conselho Nacional de Pesquisa Econômica
Aplicada de Nova Délhi, me apresenta a cinco mulheres trabalhadoras que
destinam a maior parte de seus salários ao pagamento de mensalidades de escolas
particulares. Todas têm um ou dois filhos e não pensam em ter outros. Em um
levantamento abrangendo 41 554 lares, a equipe de Sonalde identificou uma
crescente vanguarda de famílias urbanas com um único filho. "Ficamos
bastante surpresos com a importância que os pais dão aos filhos", diz ela.
"É por isso que a fecundidade está em declínio."
Já nas zonas rurais não é bem
assim. Acompanho a equipe de Sonalde a Palanpur, um vilarejo em Uttar Pradesh -
um estado no cinturão hindu cuja população é equivalente à do Brasil. No povoado,
observamos uma torre de telefonia celular mas também riachos de esgoto correndo
pelas vielas entre casebres. À sombra de uma mangueira, o guardião do pomar diz
que não vê motivo para mandar suas três filhas para a escola. Pergunto a uma
dúzia de lavradores o que seria mais importante para que melhorassem de vida.
"Um pouco de dinheiro", brinca um deles.
"O objetivo da Índia não
deveria ser a redução da fertilidade", comenta dias depois Almas Ali, da
Fundação População. "Deveria tornar a existência nos vilarejos viável.
Sempre que se fala de população na Índia, o que vêm à mente são os números
assustadores. O foco nas pessoas acabou relegado a segundo plano."
Enquanto caía a noite, levamos
quatro horas de carro para voltar de Palanpur a Délhi. Enfrentamos
congestionamentos nas cidadezinhas maiores, cada qual fervilhando de atividade,
por vezes quase engolfando nosso carro. Quando, depois de um viaduto, entramos
em Moradabad, vejo um homem empurrando sua carroça, uma carga tão grande que
ele mal enxerga adiante. Lembrei-me então do estalo de Ehrlich sentado no táxi
décadas atrás. Pessoas, pessoas, pessoas - sem dúvida. Mas também um sentimento
arrebatador de energia, de luta, de aspiração.
A reunião anual da Associação da
População da América (PAA, na sigla em inglês) é um dos principais pontos de
encontro dos demógrafos do mundo. Em abril de 2010, a explosão populacional no
planeta não fazia parte da pauta. Os demógrafos estão convencidos de que, até
meados deste século, estaremos chegando ao fim de uma era única na história - a
do crescimento demográfico - e iniciando outra fase, na qual a população vai se
manter estável ou diminuir.
Mas não haverá ainda excesso de
gente? No encontro da PAA realizado em Dallas, fiquei sabendo que a atual
população do planeta caberia inteira no Texas, caso o estado fosse ocupado de
maneira tão densa quanto a cidade de Nova York. A comparação me levou a pensar
como Leeuwenhoek. Se em 2045 houver 9 bilhões de pessoas distribuídas pelos
seis continentes habitáveis, a densidade da população mundial será de pouco
mais da metade daquela registrada na França atual. E a França não costuma ser
considerada infernal para se viver. Será então que o mundo vai ser um lugar
infernal?
Algumas regiões talvez fiquem
infernais, e isso já acontece. Existem hoje 21 cidades com mais de 10 milhões
de habitantes, e a quantidade delas só vai aumentar até 2050. As cidades de
Daca, em Bangladesh, e Kinshasa, na República Democrática do Congo, cresceram
nada menos que 40 vezes desde 1950. Suas favelas estão lotadas de gente
desesperada que fugiu de áreas rurais em que a miséria era ainda pior.
Países inteiros se defrontam com
pressões demográficas que nos parecem tão insuperáveis quanto as da Índia aos
olhos de Ehrlich em 1966. Bangladesh está entre os países mais densamente
povoados do planeta e também um dos mais ameaçados pelas mudanças climáticas; a
elevação no nível dos mares pode provocar o deslocamento de dezenas de milhões
de bengaleses. Ruanda é outro caso preocupante. No livro Colapso, Jared Diamond
argumenta que o massacre genocida em que perderam a vida cerca de 800 mil
ruandeses foi consequência de vários fatores, não só de conflitos étnicos mas
também da superpopulação - um excesso de agricultores repartindo a mesma área
em lotes cada vez menores que se tornaram insuficientes à subsistência de suas
famílias. "Os piores cenários de Malthus podem às vezes se
concretizar", conclui Diamond.
Muita gente teme a possibilidade
de que as previsões de Malthus sejam afinal comprovadas em escala global - ou
seja, que o planeta se mostre insuficiente para alimentar 9 bilhões de seres
humanos. Para Lester Brown, fundador do Instituto Worldwatch, a escassez de
alimentos poderá provocar um colapso da civilização. Os seres humanos estão
vivendo do capital natural, argumenta Brown, erodindo o solo e esvaziando os
aquíferos com maior rapidez do que eles podem ser recuperados. E isso logo
começará a prejudicar a produção de alimentos. "Remediar as deficiências
no planejamento familiar talvez seja o item mais urgente na pauta global",
escreve ele, pois, se não conseguirmos limitar a população mundial a 8 bilhões
por meio da redução da fecundidade, o que pode ocorrer é um aumento na taxa de
mortalidade.
Oito bilhões correspondem à
estimativa mais baixa da ONU para 2050. Nesse cenário otimista, Bangladesh
teria uma taxa de fecundidade de 1,35 em 2050, mas ainda 25 milhões de
habitantes a mais que hoje. A taxa de fecundidade em Ruanda também seria inferior
ao nível de reposição, mas sua população atingiria o dobro do que era antes do
genocídio. Se esse é o cenário mais otimista, alguém poderia dizer, então o
futuro é de fato deprimente.
Porém, também podemos tirar disso
outra conclusão: talvez essa preocupação com os números populacionais não seja
a melhor maneira de confrontar o futuro. As pessoas amontoadas em favelas
necessitam de ajuda, mas os problemas a ser resolvidos são a pobreza e a falta
de infraestrutura, não a superpopulação. Proporcionar a todas as mulheres
acesso aos serviços de planejamento familiar é uma boa ideia. No entanto, o
mais agressivo programa de controle populacional que se possa imaginar não vai
salvar Bangladesh da elevação no nível do mar nem Ruanda de outro genocídio nem
todos nós dos enormes problemas ambientais a nossa frente.
O aquecimento global é um
exemplo. As emissões de carbono ocasionadas pelo uso de combustíveis fósseis
estão aumentando com maior rapidez na China, mas ali a taxa de fecundidade já é
inferior ao patamar de reposição - não resta muito a fazer em termos de
controle demográfico. Nas regiões em que a população está aumentando em ritmo
mais acelerado, como na África subsaariana, as emissões per capita são bem
menores que nos Estados Unidos - portanto, o controle demográfico ali teria um
efeito irrelevante sobre o clima. Segundo cálculos de Brian O’Neill, do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica, se em 2050 a
população mundial for de 7,4 bilhões, em vez de 8,9 bilhões, as emissões
de carbono seriam reduzidas em 15%. Para interromper o aquecimento global,
teremos de trocar os combustíveis fósseis por outras formas de energia - seja
qual for o crescimento populacional.
Claro que a quantidade de pessoas
faz diferença. Mais relevante ainda é o modo como as pessoas consomem os
recursos. O principal desafio para o futuro das pessoas e do planeta é tirar da
pobreza o máximo de gente e ao mesmo tempo reduzir o impacto de todos nós sobre
o planeta.
De acordo com previsões do Banco
Mundial, até 2030 mais de 1 bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento vão
passar a fazer parte da "classe média global" - em 2005 eram apenas
400 milhões. Embora isso pareça muito bom, não será nada fácil para o planeta
se essas pessoas passarem a comer carne e a circular em carros movidos a
gasolina no mesmo ritmo atual dos americanos. É tarde demais para evitar que
nasça a classe média de 2030, mas não para mudar a maneira como ela e todos nós
produzimos e consumimos alimentos e energia.
Durante séculos, os pessimistas
bombardearam com alertas apocalípticos os otimistas congênitos que têm uma
crença inabalável de que a humanidade vai encontrar maneiras de lidar com o
problema e até de melhorar seu destino. A história, de maneira geral, até agora
favoreceu os otimistas, mas ela não é nenhum guia confiável do futuro. Tampouco
a ciência é esse guia. Ela não pode prever o resultado do confronto População
versus Planeta, pois todos os fatos relevantes - quantos seremos e como iremos
viver - dependem das escolhas que faremos e das ideias que ainda vamos ter.
Podemos, por exemplo, diz Joel Cohen, "cuidar para que todas as crianças
sejam alimentadas o suficiente para que aprendam na escola e sejam bem formadas
o suficiente para que resolvam os problemas que irão enfrentar quando chegarem
à idade adulta". Isso iria alterar de modo significativo o futuro.
A controvérsia já existia no
surgimento do alarmismo populacional, na pessoa do reverendo Thomas Malthus. No
fim do livro no qual formulou a lei de ferro, segundo a qual o crescimento da
população levaria à escassez de alimentos, ele afirma que essa lei não deixa de
ser benéfica, pois nos impele a buscar soluções. O homem, escreve, é
"preguiçoso e avesso ao esforço, a menos que seja obrigado pela
necessidade". A necessidade, acrescenta ele, é a mãe da esperança.
"Os esforços que os homens se veem obrigados a fazer, a fim de se
sustentar ou a suas famílias, despertam faculdades que de outro modo teriam
ficado para sempre dormentes, e é uma observação corriqueira que situações
novas em geral dão origem a mentes adequadas para enfrentar as dificuldades nas
quais estão envolvidas."
Sete bilhões de pessoas logo
mais, 9 bilhões em 2045. Esperemos que Malthus esteja certo a respeito de nossa
engenhosidade.
Fonte: National Geographic Brasil
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