Se a
nova lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos for, finalmente, aprovada no
dia 7, no Senado, o cenário da gestão de resíduos no país sofrerá grandes
transformações com base no princípio da responsabilidade compartilhada, que
envolve poder público, empresas e população. Para além da limpeza, o lixo
ganhará valor econômico, com efeitos sociais importantes
Logística
reversa. Este é o jargão ecológico que promete fazer parte da rotina urbana
quando entrar em vigor a nova lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos,
prevista para ter o desfecho final no dia 7 de julho, após 21 anos de debate e
ajustes no Congresso Nacional.
Mais
que um modismo, o conceito que, só recentemente, passou a ser propagado, impõe
responsabilidades capazes de mudar o jeito de consumidores, empresas e governos
lidarem com a questão do lixo. Apesar do nome rebuscado, logística reversa tem
um significado bastante simples: é o retorno de embalagens e outros materiais
como matéria-prima para as indústrias após o consumo e o descarte pela
população, reduzindo o despejo em aterros sanitários (Leia as reportagens sobre
o tema: A dinâmica da logística reversa e Eterno Regresso
Pode
ser o começo de uma convivência mais saudável com os resíduos. Será uma
história com cenário diferente do habitual na maioria das cidades, nas quais
sacos e garrafas plásticas boiam nos rios e entopem bueiros, pneus e entulho
são abandonados em terrenos baldios e é cada vez mais duro o trabalho dos garis
para limpar as ruas?
RESPONSABILIDADE
COMPARTILHADA
Para
além da limpeza, o lixo ganha valor econômico, com efeitos sociais. A nova lei
obriga a implantação de sistemas para a recuperação industrial dos resíduos que
podem ser reciclados, a começar pelas embalagens de agrotóxicos, pilhas e
baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas e produtos eletroeletrônicos e
seus componentes, como computadores, telefones celulares e cartuchos de
impressão. “O sucesso dependerá, também, da conscientização do consumidor”,
enfatiza Kami Saidi, diretor de sustentabilidade da HP Brasil. A empresa prevê
a ampliação do seu programa de reciclagem que, hoje, mantém 55 centros de
coleta de equipamentos fora de uso, no país.
De
acordo com o projeto de lei, o modelo brasileiro seguirá o princípio da
responsabilidade compartilhada entre poder público, empresas e população. O
papel das indústrias - tanto as que fabricam os produtos que precisam de um
destino adequado como as que os recebem de volta após o uso - é decisivo nesse
processo. Mas os termos desses compromissos serão definidos caso a caso,
mediante acordos setoriais após a promulgação da lei.
“Com a
legislação, a reciclagem ganha regras claras em nível nacional, podendo atrair
mais investimentos e avançar no país em curto espaço de tempo”, prevê André
Vilhena, diretor do Cempre - Compromisso Empresarial para Reciclagem, entidade
que reúne empresas de grande porte para a promoção dessa atividade no Brasil e
teve participação ativa nos debates para a Política Nacional.
O
mercado da reciclagem movimenta R$12 bilhões por ano no país, de acordo com o
Cempre.
Mas o
potencial é muito maior, uma vez que o Brasil produz 150 mil toneladas de
resíduos urbanos por dia e destina a metade para os lixões. Apenas 7% dos
municípios brasileiros fazem a coleta seletiva de lixo reciclável.
A busca
por soluções é um desafio complexo, porque envolve questões sociais, mudanças
de comportamento, hábitos de consumo e, também, interesses econômicos - o que
explica em grande parte a longa tramitação da nova lei no Congresso Nacional.
“A demora não foi um tempo perdido, porque serviu para a convergência de
posições”, afirma o deputado Arnaldo Jardim (PPS-SP), relator do projeto
concluído na Câmara dos Deputados, com apoio e consenso de diferentes setores.
O QUE
MUDA COM A NOVA LEI
Há três
meses, a projeto retornou para aprovação final do Senado, onde nasceu, em 1989,
voltado inicialmente para a questão do lixo hospitalar. Defendida pelo governo,
a lei tem acordo de lideranças para acelerar o desfecho. Após tentativas
frustradas de votação, que culminaram no dia 9 de junho no cancelamento por
falta de quorum no Senado, a expectativa é o assunto voltar à pauta na próxima
quarta-feira (dia 7).
Está
acertada uma reunião conjunta de quatro comissões para apreciação da matéria e
posterior votação em plenário, no mesmo dia. O senador César Borges (PR-BA),
relator nas comissões de Justiça e Cidadania, Assuntos Sociais e Assuntos
Econômicos, já apresentou quatro mudanças que não mudam a essência do projeto
elaborado na Câmara dos Deputados. Ele suprimiu artigos, abrindo portas para a
incineração de resíduos com fins energéticos, solução que concorre com as
cooperativas de catadores no processamento do lixo. A versão original
estabelecia uma hierarquia de prioridades para a reciclagem, com ênfase na
redução de resíduos. A incineração só aconteceria no caso de não haver outra
alternativa para reaproveitamento.
O
projeto de lei também passará pelo crivo da Comissão de Meio Ambiente, tendo como
relator o senador Cícero Lucena (PSDB-PB), envolvido na discussão sobre
reciclagem desde quando criou a Sub-Comissão de Resíduos Sólidos. O senador
informou, através de sua assessoria, que tem todo interesse em contribuir para
um desfecho rápido, mas ressalvou que há necessidade de ajustes no sentido de
retirar do texto os prazos estipulados às prefeituras para erradicar lixões.
Atendendo ao pleito da Federação Nacional dos Municípios, Lucena concorda que,
nesse ponto, a lei não poderia ser cumprida na prática pela maioria das
cidades, principalmente as menores.
A lei
proíbe a importação de rejeitos perigosos. Também exige dos empreendedores a
apresentação de um plano de gerenciamento de resíduos para ter a licença
ambiental. No entanto, apesar do consenso político, há setores que levantam
críticas. A Abrelpe - Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e
Resíduos Especiais diz que a Política Nacional de Resíduos Sólidos é um
importante avanço para o país, mas adverte que o cenário do lixo só mudará com
planejamento e conscientização.
Segundo
a entidade, a ênfase precisa estar na gestão integrada de diferentes soluções
para os resíduos, inclusive o depósito em aterros sanitários, e na reversão da
informalidade que hoje marca a reciclagem. Na opinião da Associação Brasileira
de Empresas de Tratamento de Resíduos, o projeto de lei é genérico e precisa de
ajustes, principalmente no que se refere aos resíduos industriais e à falta de
estrutura dos municípios para gestão e fiscalização.
“Sem um
marco regulatório nacional, as empresas permanecem expostas a políticas
estaduais impositivas e inadequadas, que estabelecem taxas ou metas
obrigatórias para recuperação dos materiais recicláveis”, afirma Victor Bicca,
diretor de assuntos governamentais da Coca Cola, também presidente do Cempre.
Ele defende o viés social na logística reversa. “Não podemos importar modelos
europeus”, argumenta Bicca, lembrando que, hoje, a experiência brasileira de
cooperativas de catadores é copiada por países emergentes.
O NOVO
PAPEL DAS COOPERATIVAS
A nova
legislação consagra formalmente o papel das cooperativas de catadores na gestão
do lixo, incluindo a tarefa de fazer a coleta seletiva nas residências sem a
necessidade de licitação pública. “Pela primeira vez, essa força de trabalho é
tratada sem assistencialismo, mas na lógica do mercado”, analisa Bicca. No
Brasil, existem cerca de 600 cooperativas formalizadas – elas são peças-chave
para as empresas na logística reversa de suas embalagens. Somando os autônomos,
o número de catadores se aproxima de 1 milhão.
Mas há
limitações. O principal desafio é capacitar as cooperativas para a gestão,
inserindo-as na cadeia produtiva.. “É preciso encontrar soluções mais
eficientes, capazes de absorver quantidades cada vez maiores de resíduos para
reciclagem, de maneira social e economicamente viável”, ressalta Erich Burger,
diretor da Recicleiros, empresa que desenvolve sistemas de gestão para novos
negócios dentro do modelo de “empresas sociais”. O foco é a sustentabilidade
ambiental, social e econômica: os trabalhadores que coletam, separam e
processam os materiais recicláveis são assalariados -- e não remunerados por
produtividade, como na maioria das cooperativas. Burger lembra o caso de São
Paulo, a maior metrópole brasileira, que recicla apenas 1% do total resíduos
coletados. “Há cooperativas que já não conseguem receber todo o lixo reciclável
levado pelos caminhões da coleta seletiva municipal” (Erich assina o blog
Lixograma, aqui no Planeta Sustentável).
Lucien
Belmonte, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Vidro, concorda:
“na cidade de São Paulo, onde são geradas 15 mil toneladas de lixo por dia, não
dá para imaginar a logística reversa apenas com a participação de
cooperativas”.
No
país, uma ínfima parte dos materiais pós-consumo retorna às indústrias por meio
de cooperativas. A maioria é recolhida nas ruas por catadores autônomos ou
sucateiros. A tendência, com a lei que está para ser aprovada, é o aumento
significativo dos resíduos para reciclagem. “O mercado está preparado para o
maior consumo dessa matéria prima”, completa José Ricardo Roriz, presidente da
Abiplast -Associação Brasileira da Indústria do Plástico. No caso do plástico,
a perspectiva é dobrar esses insumos após a lei. Hoje, 20% dos plásticos
separados do lixo retornam à produção.
A maior
escala incentivará o desenvolvimento de tecnologia capaz de dar novos usos aos
materiais reciclados, como é o caso do plástico PET. Hoje a reciclagem desse
material abrange 500 empresas e movimenta R$ 1,1 bilhão por ano no Brasil. “Mas
poderíamos absorver 30% mais garrafas”, afirma Auri Marçon, presidente da
Abipet - Associação Brasileira da Indústria do PET. Mais da metade desse
material, recuperado após o descarte pela população, substitui fibras
sintéticas em tecidos, como das camisas que vestem a seleção brasileira de
futebol, além de outras aplicações industriais, como peças de automóveis,
cordas e resinas para tintas.
“Com a
nova lei, a reciclagem deverá dobrar no país em cinco anos, aumentando em mais
500 mil o número de trabalhadores que hoje se dedicam à atividade”, prevê
Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak, empresa que hoje
recicla em torno de 26% das caixas de suco, leite e outros alimentos consumidos
pela população, com meta de atingir 40% em 2014.
Zuben
ressalta que, segundo a legislação, a responsabilidade pela destinação do lixo
será compartilhada entre três diferentes atores. O poder público será obrigado
a fazer a coleta seletiva, educando consumidores, erradicando lixões e
construindo aterros sanitários. Além disso, a população precisa separar os
resíduos recicláveis nas residências. E as empresas, por sua vez, devem se
engajar, utilizando para seus produtos embalagens mais fáceis de serem
recicladas e apoiando a educação ambiental, o trabalho das cooperativas de
catadores e a coleta e reutilização de materiais após o consumo pela população.
“As regras específicas são definidas aos poucos, até o fim do ano, com a
regulamentação da lei”, explica von Zuben, enfatizando que “essa etapa
significará uma nova batalha”, na qual serão definidos instrumentos financeiros
– como a acesso a crédito e impostos mais justos – para a lei sair do papel.
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